por Ana Gerschenfeld
in Público, 2008-03-06
"Um dispositivo capaz de "ler" o cérebro e de produzir uma imagem da experiência visual de uma pessoa poderá em breve tornar-se realidade", anuncia a revista Nature num lacónico comunicado, a propósito de resultados discretamente publicados na sua edição on-line hoje.
Será que percebemos bem? Estarão eles realmente a falar em detectar, nos meandros dos nossos neurónios, as imagens que a nossa mente forma quando olhamos para alguma coisa? Pois estão. Não é já para amanhã, mas o certo é que Jack Gallant e a sua equipa, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, acabam de dar um passo fundamental nesse sentido.
Utilizando apenas a análise dos padrões de actividade cerebral gerados pelo visionamento de imagens naturais, mostraram que é possível identificar, com grande precisão, a imagem que o cérebro humano está a ver.
A experiência que realizaram assemelha-se àquele truque que consiste em escolher uma carta sem a mostrar ao mágico, olhar para ela e tornar a inseri-la no baralho. Instantes depois e uns abracadabras mais tarde, o mágico puxa da carta certa e o público aplaude. Só que aqui não é magia.
Dir-te-ei o que vês
No laboratório, dois participantes (dois dos autores do estudo, Thomas Naselaris e Kendrick Kay) começaram por visionar, ao acaso, 1750 fotografias de objectos diversos. "Pessoas, sítios, animais, aquelas coisas que costumamos fotografar durante as férias", disse Gallant ao PÚBLICO. E graças à técnica de ressonância magnética funcional (fMRI), que permite visualizar em tempo real a actividade cerebral, registou-se o que estava a acontecer nas áreas visuais do cérebro, onde são processados os sinais nervosos vindos da retina.
A partir desses registos, e com base num modelo matemático que simula os processos cerebrais, os investigadores construíram um "descodificador" que produz, a partir de qualquer imagem, um determinado padrão de actividade cerebral. O modelo leva em conta, nomeadamente, "dicas" visuais que os neurobiólogos sabem que o cérebro utiliza para reconhecer o que vê, tais como a localização no espaço e a orientação dos elementos presentes na imagem apresentada.
Finda esta fase de "treino" do dispositivo, pediu-se aos participantes para olharem cada um para uma só imagem, desta vez escolhida ao acaso num conjunto de 120 fotografias, todas elas diferentes das que tinham visto até aí. Mais uma vez, registou-se a actividade cerebral de ambos.
Mas agora, em paralelo, os cientistas também recorreram à simulação matemática. Mais precisamente, para cada uma dessas 120 fotografias, o sistema descodificador gerou um padrão de actividade cerebral. O passo final foi escolher, entre todos esses padrões possíveis, aquele que mais se parecia com o padrão de actividade cerebral efectivamente produzido pelos participantes enquanto olhavam para a foto que lhe fora apresentada. Os resultados de múltiplos testes foram espectaculares: o modelo escolheu a fotografia certa em 92 por cento dos casos para Naselaris e em 72 por cento para Kay!
Quando o número de imagens possíveis aumenta, o desempenho diminui, mas mesmo assim é notável: com 1000 imagens, o descodificador ainda conseguiu identificar 82 por cento das imagens apresentadas a Naselaris. "Os nossos cálculos sugerem - dizem os autores - que num conjunto de mil milhões de imagens (da ordem das indexadas pelo Google na Internet), a imagem certa seria identificada perto de 20 por cento das vezes. Ou seja, se uma pessoa escolhesse e olhasse para uma fotografia ao acaso na Web, ainda seríamos capazes de identificar essa imagem a partir da actividade cerebral uma vez em cada cinco."
Sonhos e recordações
Se fosse possível identificar sistematicamente qualquer fotografia sem ter qualquer conhecimento prévio do conjunto onde foi escolhida, aí sim, poder-se-ia dizer que o dispositivo é capaz de "ver" as imagens dentro do cérebro. Mas isso ainda não aconteceu: "Ninguém consegue reconstruir a fotografia que a pessoa viu sem conhecer o conjunto de imagens donde ela foi tirada", explicam os autores.
"Contudo, os nossos resultados sugerem que poderá haver informação suficiente nos dados da fMRI para se conseguir chegar lá no futuro." De facto, uma coisa que este trabalho mostrou é que a informação contida nos dados de fMRI é muito mais rica do que se pensava.
Os cientistas vão ainda mais longe: se se confirmar que, quando sonhamos ou evocamos mentalmente uma cena, as imagens produzidas por essas experiências mentais são processadas pelo cérebro como se fossem imagens reais, vindas do mundo exterior através dos olhos, nada impede pensar que seja possível, um dia, descodificar também essas imagens "virtuais" com o mesmo tipo de
técnica. "Desde que as medições da actividade cerebral e os modelos matemáticos do cérebro tenham a qualidade suficiente, deverá ser possível, em teoria, descodificar o conteúdo visual de processos mentais como os sonhos, a memória e o imaginário."
in Público, 2008-03-06
"Um dispositivo capaz de "ler" o cérebro e de produzir uma imagem da experiência visual de uma pessoa poderá em breve tornar-se realidade", anuncia a revista Nature num lacónico comunicado, a propósito de resultados discretamente publicados na sua edição on-line hoje.
Será que percebemos bem? Estarão eles realmente a falar em detectar, nos meandros dos nossos neurónios, as imagens que a nossa mente forma quando olhamos para alguma coisa? Pois estão. Não é já para amanhã, mas o certo é que Jack Gallant e a sua equipa, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, acabam de dar um passo fundamental nesse sentido.
Utilizando apenas a análise dos padrões de actividade cerebral gerados pelo visionamento de imagens naturais, mostraram que é possível identificar, com grande precisão, a imagem que o cérebro humano está a ver.
A experiência que realizaram assemelha-se àquele truque que consiste em escolher uma carta sem a mostrar ao mágico, olhar para ela e tornar a inseri-la no baralho. Instantes depois e uns abracadabras mais tarde, o mágico puxa da carta certa e o público aplaude. Só que aqui não é magia.
Dir-te-ei o que vês
No laboratório, dois participantes (dois dos autores do estudo, Thomas Naselaris e Kendrick Kay) começaram por visionar, ao acaso, 1750 fotografias de objectos diversos. "Pessoas, sítios, animais, aquelas coisas que costumamos fotografar durante as férias", disse Gallant ao PÚBLICO. E graças à técnica de ressonância magnética funcional (fMRI), que permite visualizar em tempo real a actividade cerebral, registou-se o que estava a acontecer nas áreas visuais do cérebro, onde são processados os sinais nervosos vindos da retina.
A partir desses registos, e com base num modelo matemático que simula os processos cerebrais, os investigadores construíram um "descodificador" que produz, a partir de qualquer imagem, um determinado padrão de actividade cerebral. O modelo leva em conta, nomeadamente, "dicas" visuais que os neurobiólogos sabem que o cérebro utiliza para reconhecer o que vê, tais como a localização no espaço e a orientação dos elementos presentes na imagem apresentada.
Finda esta fase de "treino" do dispositivo, pediu-se aos participantes para olharem cada um para uma só imagem, desta vez escolhida ao acaso num conjunto de 120 fotografias, todas elas diferentes das que tinham visto até aí. Mais uma vez, registou-se a actividade cerebral de ambos.
Mas agora, em paralelo, os cientistas também recorreram à simulação matemática. Mais precisamente, para cada uma dessas 120 fotografias, o sistema descodificador gerou um padrão de actividade cerebral. O passo final foi escolher, entre todos esses padrões possíveis, aquele que mais se parecia com o padrão de actividade cerebral efectivamente produzido pelos participantes enquanto olhavam para a foto que lhe fora apresentada. Os resultados de múltiplos testes foram espectaculares: o modelo escolheu a fotografia certa em 92 por cento dos casos para Naselaris e em 72 por cento para Kay!
Quando o número de imagens possíveis aumenta, o desempenho diminui, mas mesmo assim é notável: com 1000 imagens, o descodificador ainda conseguiu identificar 82 por cento das imagens apresentadas a Naselaris. "Os nossos cálculos sugerem - dizem os autores - que num conjunto de mil milhões de imagens (da ordem das indexadas pelo Google na Internet), a imagem certa seria identificada perto de 20 por cento das vezes. Ou seja, se uma pessoa escolhesse e olhasse para uma fotografia ao acaso na Web, ainda seríamos capazes de identificar essa imagem a partir da actividade cerebral uma vez em cada cinco."
Sonhos e recordações
Se fosse possível identificar sistematicamente qualquer fotografia sem ter qualquer conhecimento prévio do conjunto onde foi escolhida, aí sim, poder-se-ia dizer que o dispositivo é capaz de "ver" as imagens dentro do cérebro. Mas isso ainda não aconteceu: "Ninguém consegue reconstruir a fotografia que a pessoa viu sem conhecer o conjunto de imagens donde ela foi tirada", explicam os autores.
"Contudo, os nossos resultados sugerem que poderá haver informação suficiente nos dados da fMRI para se conseguir chegar lá no futuro." De facto, uma coisa que este trabalho mostrou é que a informação contida nos dados de fMRI é muito mais rica do que se pensava.
Os cientistas vão ainda mais longe: se se confirmar que, quando sonhamos ou evocamos mentalmente uma cena, as imagens produzidas por essas experiências mentais são processadas pelo cérebro como se fossem imagens reais, vindas do mundo exterior através dos olhos, nada impede pensar que seja possível, um dia, descodificar também essas imagens "virtuais" com o mesmo tipo de
técnica. "Desde que as medições da actividade cerebral e os modelos matemáticos do cérebro tenham a qualidade suficiente, deverá ser possível, em teoria, descodificar o conteúdo visual de processos mentais como os sonhos, a memória e o imaginário."