Como o Daniel Melo anda muito ocupado, e eu lamento não poder assistir, venho dar notícia. E aguardo pela disponibilização dos textos do colóquio de amanhã e depois no ICS, assim que possível.
«A construção da nação e o fenómeno associativo na diáspora portuguesa: perspectivas comparadas» (simpósio internacional coordenado por Daniel Melo e Eduardo Caetano da Silva), no ICS-UL. Dia 24, exibiçãod e documentário na sala de aulas 3 do ICS; dia 25, das 9.30 às 17.30, comunicações na Sala Polivalente.
quarta-feira, 23 de maio de 2007
quinta-feira, 10 de maio de 2007
Portugal (?) então
Com a devida autorização do autor, nos próximos dias publico excertos de textos cuja versão integral se encontra na secção de crítica da revista Prelo, nº4 (INCM, 3ª série, Lisboa, Janeiro-Abril 2007). Uns aqui, outros no outro lado.
«Ralph Fox, Portugal Now – Um espião comunista no Estado Novo, edições Tinta da China, Lisboa, 2006 (com prefácio de José Neves)
Este pequeno livro é uma raridade mesmo no seu país de origem. No último Outono tive de o procurar nos catálogos suplementares (isto é, por informatizar, logo semi-abandonados) de uma das maiores bibliotecas universitárias – e depósito legal – de Inglaterra para o encontrar. Até por este lado semi-clandestino, sete décadas após ter sido escrito (1936) e publicado (1937), o relato da viagem de Ralph Fox por Portugal é uma tradução digna de nota na actividade editorial portuguesa de 2006.
Pequeno na sua extensão (125 páginas bem espaçadas e ilustradas na edição portuguesa), o livro de Fox, na sua origem uma série de artigos para a Imprensa inglesa, não é particularmente interessante pelo que diz de Portugal. O subtítulo da edição portuguesa, jogando com o tom romanesco da escrita, refere-se ao autor como ‘espião comunista’, mas, a tê-lo sido, não o foi nesta viagem. O Portugal de Fox é Lisboa, com o salto da ordem até ao Estoril, comentando o lado mais visível da vida urbana e de classe média-alta local, à época bem cosmopolita com a proximidade da Guerra Civil em Espanha. O motivo directo da viagem foi, aliás, esse, o de visitar a retaguarda da Guerra Civil de Espanha e dar notícia daquilo a que Fox se refere como ‘a Nova Europa’, a Europa do Fascismo em ascensão. Isto dá ao tom do livro um certo travo dúplice, pois o contraponto entre esta nova Europa, combatida pelo autor, e a velha Europa, que em rigor Fox também não estima (a burguesa, demoliberal, mergulhada em crise desde a I Guerra Mundial), deixa na sombra o modelo comunista, ou mais exactamente soviético, pelo qual Ralph Fox se batia.
(...)»
«Ralph Fox, Portugal Now – Um espião comunista no Estado Novo, edições Tinta da China, Lisboa, 2006 (com prefácio de José Neves)
Este pequeno livro é uma raridade mesmo no seu país de origem. No último Outono tive de o procurar nos catálogos suplementares (isto é, por informatizar, logo semi-abandonados) de uma das maiores bibliotecas universitárias – e depósito legal – de Inglaterra para o encontrar. Até por este lado semi-clandestino, sete décadas após ter sido escrito (1936) e publicado (1937), o relato da viagem de Ralph Fox por Portugal é uma tradução digna de nota na actividade editorial portuguesa de 2006.
Pequeno na sua extensão (125 páginas bem espaçadas e ilustradas na edição portuguesa), o livro de Fox, na sua origem uma série de artigos para a Imprensa inglesa, não é particularmente interessante pelo que diz de Portugal. O subtítulo da edição portuguesa, jogando com o tom romanesco da escrita, refere-se ao autor como ‘espião comunista’, mas, a tê-lo sido, não o foi nesta viagem. O Portugal de Fox é Lisboa, com o salto da ordem até ao Estoril, comentando o lado mais visível da vida urbana e de classe média-alta local, à época bem cosmopolita com a proximidade da Guerra Civil em Espanha. O motivo directo da viagem foi, aliás, esse, o de visitar a retaguarda da Guerra Civil de Espanha e dar notícia daquilo a que Fox se refere como ‘a Nova Europa’, a Europa do Fascismo em ascensão. Isto dá ao tom do livro um certo travo dúplice, pois o contraponto entre esta nova Europa, combatida pelo autor, e a velha Europa, que em rigor Fox também não estima (a burguesa, demoliberal, mergulhada em crise desde a I Guerra Mundial), deixa na sombra o modelo comunista, ou mais exactamente soviético, pelo qual Ralph Fox se batia.
(...)»
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quarta-feira, 9 de maio de 2007
Do (in)determinismo genético
Quando escrevo determinismo genético refiro-me à ideia de que uma determinada característica de um individuo, seja caractaristica física ou o comportamento, é o produto exclusivamente da informação contida nos seus genes. A hipótese alternativa é essa caracteristica ser determinada por factores ambientais. A velha questão "Nature vs Nurture" é tão antiga como a genética, ou talvez mais (em rigor a Genética não é assim tão antiga quanto isso, começa com as experiências de Mendel, que de início são ignoradas e só são redescobertas em 1900).
Na minha opinião esta discussão debate-se a dois níveis que não devem ser confundidos. Primeiro a questão de saber se a característica A ou B é um produto exclusivamente de genes é uma questão técnica/científica. Isso não quer dizer que só especialistas em Genética possam debater o assunto, pelo contrário, todos devem debater. Mas o plano de discussão é científico, quer isso dizer que havendo dados empíricos que indicam que uma característica é determinada geneticamente há que averiguar se os dados corroboram as conclusões, se a metodologia utilizada é correcta, se existem outros dados que os contradigam. O que não pode acontecer é recusar os dados existentes baseado numa opção ideológica, não acreditar nas evidências por não querer acreditar. Se, por exemplo, um trabalho sugere que a homossexualidade tem uma forte componente genética (como este artigo faz), é fazendo uma crítica metodológica que podemos - ou não - discordar, não se pode recusá-lo por uma questão "de princípio".
Depois há um segundo nível de discussão que é ético, moral, e também político. Construindo sobre o conhecimento científico (sem esquecer que este não é nunca definitivo nem imutável), importa discutir como se posicionar relativamente a esse conhecimento. Pegando novamente no exemplo da homossexualidade, e fazendo o exercício de aceitar que ela é determinada geneticamente (actualmente longe de estar provado), temos pelo menos duas atitudes possíveis: uma será de considerar que a homossexualidade é uma anomalia genética, outra é de aceitá-la como parte natural da diversidade genética humana. A questão aqui não é de saber se a homossexualidade é genética, mas de como reagir perante a descoberta que ela é efectivamente Genética.
No primeiro nível de abordagem, o técnico/científico, importa saber se há razões para pensar se aquilo que somos é determinado geneticamente. A questão não é simples, porque depende de saber de que característica em concreto estamos a falar. Por exemplo a cor dos olhos é determinada geneticamente (a não ser que consideremos as lentes de contacto como um factor ambiental). Mas ser determinado geneticamente não significa que há UM gene responsável por essa característica, há pouqíssimos exemplos disso e os que me lembro são doenças (a fibrose cística, a paramiloidose). Geralmente são vários genes contribuem para uma determinada característica, o que torna logo muito mais complicado uma abordagem determinista: se são vários os genes envolvidos, cada indivíduo pode ter uma combinação diferente desses genes, e cada combinação dá um resultado diferente, ou seja cada caso é um caso. Mais ainda, um mesmo gene geralmente contribui para inúmeros processos diferentes, ou seja influencia várias características, o que resulta numa combinação de combinações. O determinismo genético torna-se já dificilmente sustentável, mesmo sem levar em conta a influência de factores ambientais. Pode sempre argumentar-se que é apenas uma questão de limitação dos conhecimentos em Genética, e que com o aprofundar desses conhecimentos o determinismo tornar-se-á possível.
Consideremos então os factores ambientais. Como já referi depende do que estamos a falar, cada característica pode ter uma influência maior ou menor (ou nula mesmo) de factores ambientais. Tentar saber se aquilo que somos globalmente é o produto de factores genéticos ou ambientais é uma questão inabordável e ao mesmo tempo insuficiente. Obviamente que somos o produto de ambos. Mas haverá um modelo global que emerge que explique como factores ambientais e genéticos influenciam aquilo que somos? Na minha opinião sim, mas nunca vendo o resultado final como uma simples soma aritmética de factores ambientais mais factores genéticos. Dando como exemplo a obesidade: dois individuos com o mesmo regime alimentar podem ser um obeso e o outro não, tal como dois gémeos idênticos com dois regimes alimentares diferentes pode um ser obeso e o outro não. Olhando só para o primeiro exemplo diremos que a obesidade é determinada geneticamente, olhando só para o segundo diremos que é determinada por factores ambientais. O paradigma que me parece emergir dos avanços recentes na Genética resolve este paradoxo. Um individuo não é um produto apenas dos seus genes, nem sequer uma soma aritmética da influência dos genes e do ambiente. Um indivíduo é o resultado de uma interacção entre os genes e o ambiente, em que um e outro desempenham papeis diferentes. O papel dos genes é o de determinar os mecanismos pelos quais o indivíduo vai interagir com o ambiente, e o ambiente é uma entidade exterior ao indivíduo que este não pode controlar mas ao qual se pode adaptar. No exemplo da obesidade, os genes não determinam se um indivíduo é obeso, mas determinam sim o seu metabolismo. Se um indivíduo com um metabolismo que tende a armazenar calorias tiver uma dieta rica então será obeso, mas pode sempre adaptar-se alterando a sua dieta. A forma de digerir e a metabolizar os nutrientes é o mecanismo pelo qual o organismo interage com o ambiente, e é determinado geneticamente.
Apetece-me citar o exemplo da inteligência, que é seguramente mais controverso e mais complexo. Controverso e complexo logo para começar porque a inteligência como objecto não está suficientemente definido, é circunstancial. O que para "nós" numa sociedade urbana ocidental é inteligente não é a mesma coisa que um Ameríndio no meio da selva amazónica considera inteligente. Logo enquanto objecto mensurável, para que possamos dizer A é mais inteligente que B, a inteligência está longe de ser establecida. Mas deixemos de lado esta "pequena" limitação, e vamos partir do princípio que a nossa noção intuitiva de inteligência é consensual, e objecto passível de estudo e mensurável. Não existe qualquer evidência que apoie a ideia de que a inteligência é determinada geneticamente, ou seja não foram encontrados genes que possam influenciar a maior ou menor inteligência de uma pessoa. Isso não quer dizer que não venham a ser encontrados tais genes no futuro. Por outro lado a Developmental Neurobiology já encontrou inúmeros genes responsáveis pela arquitectura do cérebero. O desenvolvimento do cérebro como estrura regionalizada, com telencéfalo, hipocampo, córtex prefrontal, e mais uma data de palavrões técnicos, é determinado geneticamente, e ocorre na sua quase totalidade antes do nascimento. Digamos que o desenho da "máquina", do "hardware" é determinado geneticamente, mas isso não faz uma pessoa inteligente, é preciso o "software". Claro que também é preciso que a "máquina" funcione, senão dá um grande "crash", mas isso é o que acontece com as doenças neurodegenerativas por exemplo. Numa situação em que não há uma condição patológica, o factor genético, o tal desenho da máquina não é o factor limitante (atenção que isto não é um dado científico, é apenas uma opinião pessoal, como tal discutível). O tal factor genético quando muito determina um potencial máximo do funcionamento do cérebro, logo da inteligência, mas esse potencial máximo é largamente excessivo relativamente a utilização efectiva que fazemos do cérebro. Mal de nós se algum dia antigirmos a capacidade máxima do nosso cérebro, seria assim como um computador que com o processador e o disco rígido cheios: "crasha", o que suponho seria algo parecido com uma doença de Alzheimer. Penso portanto que toda a evidência indica que o factor genético embora determine o desenvolvimento do cérebro não é limitante quanto à determinação da inteligência. Essa na realidade vai depender do uso que se fizer do cérebro, dos factores ambientais afinal.
Passando ao segundo nível de abordagem: quais as consequências éticas, morais e políticas dos conhecimentos actuais da Genética?
O maior perigo a este nível é o de atribuir um juízo valorativo aos genes. Pelo menos tem sido esse o erro que se tem repetido vezes sem conta ao longo dos tempos (é um perigo que já existia muito antes do nascimento da Genética enquanto Ciência). E é um erro que não é científico, e não vem necessariamente dos cientistas. Atribuir um juízo valorativo aos genes, dizer que um gene A é melhor que um gene B é um erro porque é fundado no preconceito. Foi esse preconceito que levou ao aparecimento do eugenismo. E o perigo é que o preconceito vem disfarçado de verdade científica, e é essa fraude que é necessário desmontar. Este juízo de valor, não é nem pode ser científico pela simples razão que a noção de superioridade é subjectiva, logo não pode nunca ser o produto de uma análise objectiva.
O eugenismo como teoria - que convém lembrar teve muitos adeptos para além do regime nazi - surgiu tendo por objectivo seleccionar uma "raça" geneticamente superior. Esta noção de superioridade, na minha opinião, é um sucedâneo moderno do essencialismo. O essencialismo, no conceito de Platão e Aristóles, estabelece que um indivíduo não é senão uma representação imperfeita da sua essência. No caso do Homem, existe uma essência de Humano, da qual cada um de nós é uma materialização necessariamente imperfeita. Desta noção de essência deriva o conceito de pureza, e da pureza a superioridade. Esta visão nega completamente qualquer noção de diversidade, e estabelece um ideal de pureza, a tal essência, como padrão a que todos os indivíduos estão subordinados. Contudo definir concretamente em que consiste esse ideal de Humano, essa essência, é obviamente uma determinação subjectiva e arbitrária, mas é apresentada pelos eugenistas como uma evidência científica, quando não axiomática. Ironicamente, mas sem que daí se possa inferir qualquer noção de superioridade de sentido contrário, o estudo da Genética de Populações sugere-nos a diversidade é um factor positivo na sobrevivência de uma população ou de uma espécie. Uma hipotética "Raça Pura", monolítica, e sem diversidade genética teria uma forte probabilidade de tender para a extinção a curto prazo.
O debate sobre determinismo genético é particularmente importante e controverso no que respeita ao comportamento, e espeicalmente o comportamento humano. Nos anos 1970 surgiu a Sociobiologia, uma teoria que pretendia aliar o estudo do comportamento com a Evolução Biológica. Embora muito meritório como movimento científico, caiu no erro de um determinismo genético diferente do eugenismo. Sendo que a evolução é o resultado da transmissão de genes de uma geração à seguinte, a Sociobiologia tenta explicar comportamentos conservados evolutivamente exclusivamente numa base genética. No que toca à espécie humana esta visão despreza a transmissão de comportamentos culturalmente. Negligencia que os genes podem determinar não os comportamentos em si, mas um sistema nervoso capaz de transmitir comportamentos culturalmente. Como pode ler-se na página linkada ali em cima (destaque meu):
According to many critics of human sociobiology, standard sociobiological models are inadequate to account for human behavior, because they ignore the contributions of the mind and culture. A second criticism concerns genetic determinism, the view that many social behaviors are genetically fixed. Critics of sociobiology often complain that its reliance on genetic determinism, especially of human behavior, provides tacit approval of the status quo. If male aggression is genetically fixed and reproductively advantageous, critics argue, then male aggression seems to be a biological reality (and, perhaps, a biological ‘good’) about which we have little control. This seems to be both politically dangerous and scientifically implausible.
O eugenismo na sua forma original, como procura de uma raça superior, e de uma forma de pureza não tem hoje muita expressão. Foi abandonado após os excessos cometidos pelo regime nazi. No entanto tem ainda influência numa certa maneira de olhar para os avanços modernos na Genética, em particular com aplicação à Medicina. O "truque" moderno é substituir a noção de pureza por normal, e a inferioridade por doença. Relembre-se as declarações de Sarkozy durante a campanha eleitoral para as eleições francesas, afirmando-se convicto de que "se nasce pedófilo" e que o suicídio de jovens se deve a "uma fragilidade genética". Esta é a versão moderna do eugenismo, e que normalmente não vem da comunidade científica. Quando se ouve declarações destas convém desde logo verificar se estas afirmações têm suporte empírico, o tal primeiro nível do debate que referi no início. Não deixa de ser sintomático que no exemplo de Sarkozy foi a própria comunidade científica que esteve na primeira linha das críticas, precisamente porque não há a mínima evidência para estas afirmações. Convém também ter em atenção o que é considerado como doença ou anomalia, porque é uma fronteira ténue, difícil de manter uma definição objectiva. Aí reside também o perigo, mesmo que uma dada característica seja determinada geneticamente não é necessariamente uma anomalia segundo critérios objectivos, mas pode ser considerada como tal por razões morais ou ideológicas.
Na minha opinião esta discussão debate-se a dois níveis que não devem ser confundidos. Primeiro a questão de saber se a característica A ou B é um produto exclusivamente de genes é uma questão técnica/científica. Isso não quer dizer que só especialistas em Genética possam debater o assunto, pelo contrário, todos devem debater. Mas o plano de discussão é científico, quer isso dizer que havendo dados empíricos que indicam que uma característica é determinada geneticamente há que averiguar se os dados corroboram as conclusões, se a metodologia utilizada é correcta, se existem outros dados que os contradigam. O que não pode acontecer é recusar os dados existentes baseado numa opção ideológica, não acreditar nas evidências por não querer acreditar. Se, por exemplo, um trabalho sugere que a homossexualidade tem uma forte componente genética (como este artigo faz), é fazendo uma crítica metodológica que podemos - ou não - discordar, não se pode recusá-lo por uma questão "de princípio".
Depois há um segundo nível de discussão que é ético, moral, e também político. Construindo sobre o conhecimento científico (sem esquecer que este não é nunca definitivo nem imutável), importa discutir como se posicionar relativamente a esse conhecimento. Pegando novamente no exemplo da homossexualidade, e fazendo o exercício de aceitar que ela é determinada geneticamente (actualmente longe de estar provado), temos pelo menos duas atitudes possíveis: uma será de considerar que a homossexualidade é uma anomalia genética, outra é de aceitá-la como parte natural da diversidade genética humana. A questão aqui não é de saber se a homossexualidade é genética, mas de como reagir perante a descoberta que ela é efectivamente Genética.
No primeiro nível de abordagem, o técnico/científico, importa saber se há razões para pensar se aquilo que somos é determinado geneticamente. A questão não é simples, porque depende de saber de que característica em concreto estamos a falar. Por exemplo a cor dos olhos é determinada geneticamente (a não ser que consideremos as lentes de contacto como um factor ambiental). Mas ser determinado geneticamente não significa que há UM gene responsável por essa característica, há pouqíssimos exemplos disso e os que me lembro são doenças (a fibrose cística, a paramiloidose). Geralmente são vários genes contribuem para uma determinada característica, o que torna logo muito mais complicado uma abordagem determinista: se são vários os genes envolvidos, cada indivíduo pode ter uma combinação diferente desses genes, e cada combinação dá um resultado diferente, ou seja cada caso é um caso. Mais ainda, um mesmo gene geralmente contribui para inúmeros processos diferentes, ou seja influencia várias características, o que resulta numa combinação de combinações. O determinismo genético torna-se já dificilmente sustentável, mesmo sem levar em conta a influência de factores ambientais. Pode sempre argumentar-se que é apenas uma questão de limitação dos conhecimentos em Genética, e que com o aprofundar desses conhecimentos o determinismo tornar-se-á possível.
Consideremos então os factores ambientais. Como já referi depende do que estamos a falar, cada característica pode ter uma influência maior ou menor (ou nula mesmo) de factores ambientais. Tentar saber se aquilo que somos globalmente é o produto de factores genéticos ou ambientais é uma questão inabordável e ao mesmo tempo insuficiente. Obviamente que somos o produto de ambos. Mas haverá um modelo global que emerge que explique como factores ambientais e genéticos influenciam aquilo que somos? Na minha opinião sim, mas nunca vendo o resultado final como uma simples soma aritmética de factores ambientais mais factores genéticos. Dando como exemplo a obesidade: dois individuos com o mesmo regime alimentar podem ser um obeso e o outro não, tal como dois gémeos idênticos com dois regimes alimentares diferentes pode um ser obeso e o outro não. Olhando só para o primeiro exemplo diremos que a obesidade é determinada geneticamente, olhando só para o segundo diremos que é determinada por factores ambientais. O paradigma que me parece emergir dos avanços recentes na Genética resolve este paradoxo. Um individuo não é um produto apenas dos seus genes, nem sequer uma soma aritmética da influência dos genes e do ambiente. Um indivíduo é o resultado de uma interacção entre os genes e o ambiente, em que um e outro desempenham papeis diferentes. O papel dos genes é o de determinar os mecanismos pelos quais o indivíduo vai interagir com o ambiente, e o ambiente é uma entidade exterior ao indivíduo que este não pode controlar mas ao qual se pode adaptar. No exemplo da obesidade, os genes não determinam se um indivíduo é obeso, mas determinam sim o seu metabolismo. Se um indivíduo com um metabolismo que tende a armazenar calorias tiver uma dieta rica então será obeso, mas pode sempre adaptar-se alterando a sua dieta. A forma de digerir e a metabolizar os nutrientes é o mecanismo pelo qual o organismo interage com o ambiente, e é determinado geneticamente.
Apetece-me citar o exemplo da inteligência, que é seguramente mais controverso e mais complexo. Controverso e complexo logo para começar porque a inteligência como objecto não está suficientemente definido, é circunstancial. O que para "nós" numa sociedade urbana ocidental é inteligente não é a mesma coisa que um Ameríndio no meio da selva amazónica considera inteligente. Logo enquanto objecto mensurável, para que possamos dizer A é mais inteligente que B, a inteligência está longe de ser establecida. Mas deixemos de lado esta "pequena" limitação, e vamos partir do princípio que a nossa noção intuitiva de inteligência é consensual, e objecto passível de estudo e mensurável. Não existe qualquer evidência que apoie a ideia de que a inteligência é determinada geneticamente, ou seja não foram encontrados genes que possam influenciar a maior ou menor inteligência de uma pessoa. Isso não quer dizer que não venham a ser encontrados tais genes no futuro. Por outro lado a Developmental Neurobiology já encontrou inúmeros genes responsáveis pela arquitectura do cérebero. O desenvolvimento do cérebro como estrura regionalizada, com telencéfalo, hipocampo, córtex prefrontal, e mais uma data de palavrões técnicos, é determinado geneticamente, e ocorre na sua quase totalidade antes do nascimento. Digamos que o desenho da "máquina", do "hardware" é determinado geneticamente, mas isso não faz uma pessoa inteligente, é preciso o "software". Claro que também é preciso que a "máquina" funcione, senão dá um grande "crash", mas isso é o que acontece com as doenças neurodegenerativas por exemplo. Numa situação em que não há uma condição patológica, o factor genético, o tal desenho da máquina não é o factor limitante (atenção que isto não é um dado científico, é apenas uma opinião pessoal, como tal discutível). O tal factor genético quando muito determina um potencial máximo do funcionamento do cérebro, logo da inteligência, mas esse potencial máximo é largamente excessivo relativamente a utilização efectiva que fazemos do cérebro. Mal de nós se algum dia antigirmos a capacidade máxima do nosso cérebro, seria assim como um computador que com o processador e o disco rígido cheios: "crasha", o que suponho seria algo parecido com uma doença de Alzheimer. Penso portanto que toda a evidência indica que o factor genético embora determine o desenvolvimento do cérebro não é limitante quanto à determinação da inteligência. Essa na realidade vai depender do uso que se fizer do cérebro, dos factores ambientais afinal.
Passando ao segundo nível de abordagem: quais as consequências éticas, morais e políticas dos conhecimentos actuais da Genética?
O maior perigo a este nível é o de atribuir um juízo valorativo aos genes. Pelo menos tem sido esse o erro que se tem repetido vezes sem conta ao longo dos tempos (é um perigo que já existia muito antes do nascimento da Genética enquanto Ciência). E é um erro que não é científico, e não vem necessariamente dos cientistas. Atribuir um juízo valorativo aos genes, dizer que um gene A é melhor que um gene B é um erro porque é fundado no preconceito. Foi esse preconceito que levou ao aparecimento do eugenismo. E o perigo é que o preconceito vem disfarçado de verdade científica, e é essa fraude que é necessário desmontar. Este juízo de valor, não é nem pode ser científico pela simples razão que a noção de superioridade é subjectiva, logo não pode nunca ser o produto de uma análise objectiva.
O eugenismo como teoria - que convém lembrar teve muitos adeptos para além do regime nazi - surgiu tendo por objectivo seleccionar uma "raça" geneticamente superior. Esta noção de superioridade, na minha opinião, é um sucedâneo moderno do essencialismo. O essencialismo, no conceito de Platão e Aristóles, estabelece que um indivíduo não é senão uma representação imperfeita da sua essência. No caso do Homem, existe uma essência de Humano, da qual cada um de nós é uma materialização necessariamente imperfeita. Desta noção de essência deriva o conceito de pureza, e da pureza a superioridade. Esta visão nega completamente qualquer noção de diversidade, e estabelece um ideal de pureza, a tal essência, como padrão a que todos os indivíduos estão subordinados. Contudo definir concretamente em que consiste esse ideal de Humano, essa essência, é obviamente uma determinação subjectiva e arbitrária, mas é apresentada pelos eugenistas como uma evidência científica, quando não axiomática. Ironicamente, mas sem que daí se possa inferir qualquer noção de superioridade de sentido contrário, o estudo da Genética de Populações sugere-nos a diversidade é um factor positivo na sobrevivência de uma população ou de uma espécie. Uma hipotética "Raça Pura", monolítica, e sem diversidade genética teria uma forte probabilidade de tender para a extinção a curto prazo.
O debate sobre determinismo genético é particularmente importante e controverso no que respeita ao comportamento, e espeicalmente o comportamento humano. Nos anos 1970 surgiu a Sociobiologia, uma teoria que pretendia aliar o estudo do comportamento com a Evolução Biológica. Embora muito meritório como movimento científico, caiu no erro de um determinismo genético diferente do eugenismo. Sendo que a evolução é o resultado da transmissão de genes de uma geração à seguinte, a Sociobiologia tenta explicar comportamentos conservados evolutivamente exclusivamente numa base genética. No que toca à espécie humana esta visão despreza a transmissão de comportamentos culturalmente. Negligencia que os genes podem determinar não os comportamentos em si, mas um sistema nervoso capaz de transmitir comportamentos culturalmente. Como pode ler-se na página linkada ali em cima (destaque meu):
According to many critics of human sociobiology, standard sociobiological models are inadequate to account for human behavior, because they ignore the contributions of the mind and culture. A second criticism concerns genetic determinism, the view that many social behaviors are genetically fixed. Critics of sociobiology often complain that its reliance on genetic determinism, especially of human behavior, provides tacit approval of the status quo. If male aggression is genetically fixed and reproductively advantageous, critics argue, then male aggression seems to be a biological reality (and, perhaps, a biological ‘good’) about which we have little control. This seems to be both politically dangerous and scientifically implausible.
O eugenismo na sua forma original, como procura de uma raça superior, e de uma forma de pureza não tem hoje muita expressão. Foi abandonado após os excessos cometidos pelo regime nazi. No entanto tem ainda influência numa certa maneira de olhar para os avanços modernos na Genética, em particular com aplicação à Medicina. O "truque" moderno é substituir a noção de pureza por normal, e a inferioridade por doença. Relembre-se as declarações de Sarkozy durante a campanha eleitoral para as eleições francesas, afirmando-se convicto de que "se nasce pedófilo" e que o suicídio de jovens se deve a "uma fragilidade genética". Esta é a versão moderna do eugenismo, e que normalmente não vem da comunidade científica. Quando se ouve declarações destas convém desde logo verificar se estas afirmações têm suporte empírico, o tal primeiro nível do debate que referi no início. Não deixa de ser sintomático que no exemplo de Sarkozy foi a própria comunidade científica que esteve na primeira linha das críticas, precisamente porque não há a mínima evidência para estas afirmações. Convém também ter em atenção o que é considerado como doença ou anomalia, porque é uma fronteira ténue, difícil de manter uma definição objectiva. Aí reside também o perigo, mesmo que uma dada característica seja determinada geneticamente não é necessariamente uma anomalia segundo critérios objectivos, mas pode ser considerada como tal por razões morais ou ideológicas.
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segunda-feira, 7 de maio de 2007
Regime e sistema
Com a devida autorização do autor, nos próximos dias publico excertos de textos cuja versão integral se encontra na secção de crítica da revista Prelo, nº4 (INCM, 3ª série, Lisboa, Janeiro-Abril 2007). Uns aqui, outros no outro lado.
«José Medeiros Ferreira, Cinco Regimes na Política Internacional, Editorial presença, Lisboa, 2006.
O próprio título deste livro contém um elemento da maior importância na sua leitura e que merece mais atenção da que habitualmente lhe é dada e do que o próprio livro lhe reserva – o termo «regime». Na sua acepção clássica, o «regime político» era a concepção de vida em sociedade que regulava as relações entre indíviduos e instituições, não se diferenciando por isso (veja-se Platão ou Aristóteles) entre regime social e sistema de governo. Um regime era democrático se nele predominasse o povo, aristocrático se nele vingassem os melhores (os excelentes), ou monárquico se fosse regido apenas por um; depois, claro, havia perversões (com muitas variantes possíveis). Fazendo isto sentido no mundo Antigo, em que a cidade-Estado era a unidade política fundamental e de reduzida dimensão, a era Imperial que se lhe seguiu e sob a sombra da qual a política europeia viveu até à era moderna colocou este problemas em termos que agora são obsoletos. Com efeito, os modernos e as suas sociedades de massa, com elevada complexidade interna, engendraram espontaneamente (ou quase…) uma distinção entre regime e sistema. Nesta, o regime é algo mais vago e distante, o princípio regulador social, mas sem expressão directa ao nível do sistema de governo; assim, a república é uma concepção (igualitária) de regime, e a democracia um sistema (igualitário) para o seu governo. Contudo, a dificuldade está em muitas vezes esta diferenciação ser também esquecida na discussão política, ao identificar-se o sistema, as instituições públicas concretas, com o regime. Esta dificuldade é substancial, pois sobrecarrega as missões de governação dos corpos sociais dos sistemas políticos (assembleias, governos, etc.) com funções ideológicas e simbólicas que dizem respeito ao regime social (e não apenas de governação) das sociedades, isto é, transfere para o domínio dos meios de acção questões que são de princípios ordenadores da vida em sociedade.
Este volume, que colige com as necessárias adaptações textos vários de Medeiros Ferreira, exibe bem o problema. Os seus cinco regimes são a Monarquia Constitucional, a República, a Ditadura Militar, o Estado Novo e a democracia pós-25 de Abril. (O sidonismo não é reconhecido, e bem, pois não chegou a institucionalizar-se.) Mas, pelo menos segundo o exposto acima, só a Monarquia e a república são aqui regimes; tudo o mais é do domínio do sistema de governo. Podia não ser assim, mas o facto é que a ditadura militar não pretendeu instaurar um regime militar (e não fez), tal como o Estado Novo não reabriu, antes encerrou, a questão monárquica. Ou seja: demoliberais falhados (I República) ou bem sucedidos (desde 1974), ditatoriais militares ou civis (Estado Novo), os sistemas de governo do nosso século XX fizeram-se todos dentro de uma concepção de regime republicana, isto é, de igualdade de todos perante a lei (as manhas jurídicas do corporativismo português devem muito a isto, não apenas à tradição servilista portuguesa). Ainda assim, bem entendido, não se trata de uma continuidade, a simples mudança de sistema comporta consequências sobre a própria legitimidade de um dado regime (uma república, por definição, exclui ditaduras…), como a nossa história bem comprova. Mas toda esta é uma discussão aqui inexistente (talvez um próximo trabalho de Hermínio Martins, anunciado no volume de homenagem que lhe foi dedicado recentemente e publicado pela Imprensa de Ciências Sociais, venha a abordá-la, esperemos).
(..)»
O resto do texto está na revista. Mas aproveito para responder à dúvida de Daniel Melo na caixa de comentários do penúltimo post: houve consensos mínimos nas décadas de 20 e 30, de facto, mas tão mínimos que deu no que sabemos…
«José Medeiros Ferreira, Cinco Regimes na Política Internacional, Editorial presença, Lisboa, 2006.
O próprio título deste livro contém um elemento da maior importância na sua leitura e que merece mais atenção da que habitualmente lhe é dada e do que o próprio livro lhe reserva – o termo «regime». Na sua acepção clássica, o «regime político» era a concepção de vida em sociedade que regulava as relações entre indíviduos e instituições, não se diferenciando por isso (veja-se Platão ou Aristóteles) entre regime social e sistema de governo. Um regime era democrático se nele predominasse o povo, aristocrático se nele vingassem os melhores (os excelentes), ou monárquico se fosse regido apenas por um; depois, claro, havia perversões (com muitas variantes possíveis). Fazendo isto sentido no mundo Antigo, em que a cidade-Estado era a unidade política fundamental e de reduzida dimensão, a era Imperial que se lhe seguiu e sob a sombra da qual a política europeia viveu até à era moderna colocou este problemas em termos que agora são obsoletos. Com efeito, os modernos e as suas sociedades de massa, com elevada complexidade interna, engendraram espontaneamente (ou quase…) uma distinção entre regime e sistema. Nesta, o regime é algo mais vago e distante, o princípio regulador social, mas sem expressão directa ao nível do sistema de governo; assim, a república é uma concepção (igualitária) de regime, e a democracia um sistema (igualitário) para o seu governo. Contudo, a dificuldade está em muitas vezes esta diferenciação ser também esquecida na discussão política, ao identificar-se o sistema, as instituições públicas concretas, com o regime. Esta dificuldade é substancial, pois sobrecarrega as missões de governação dos corpos sociais dos sistemas políticos (assembleias, governos, etc.) com funções ideológicas e simbólicas que dizem respeito ao regime social (e não apenas de governação) das sociedades, isto é, transfere para o domínio dos meios de acção questões que são de princípios ordenadores da vida em sociedade.
Este volume, que colige com as necessárias adaptações textos vários de Medeiros Ferreira, exibe bem o problema. Os seus cinco regimes são a Monarquia Constitucional, a República, a Ditadura Militar, o Estado Novo e a democracia pós-25 de Abril. (O sidonismo não é reconhecido, e bem, pois não chegou a institucionalizar-se.) Mas, pelo menos segundo o exposto acima, só a Monarquia e a república são aqui regimes; tudo o mais é do domínio do sistema de governo. Podia não ser assim, mas o facto é que a ditadura militar não pretendeu instaurar um regime militar (e não fez), tal como o Estado Novo não reabriu, antes encerrou, a questão monárquica. Ou seja: demoliberais falhados (I República) ou bem sucedidos (desde 1974), ditatoriais militares ou civis (Estado Novo), os sistemas de governo do nosso século XX fizeram-se todos dentro de uma concepção de regime republicana, isto é, de igualdade de todos perante a lei (as manhas jurídicas do corporativismo português devem muito a isto, não apenas à tradição servilista portuguesa). Ainda assim, bem entendido, não se trata de uma continuidade, a simples mudança de sistema comporta consequências sobre a própria legitimidade de um dado regime (uma república, por definição, exclui ditaduras…), como a nossa história bem comprova. Mas toda esta é uma discussão aqui inexistente (talvez um próximo trabalho de Hermínio Martins, anunciado no volume de homenagem que lhe foi dedicado recentemente e publicado pela Imprensa de Ciências Sociais, venha a abordá-la, esperemos).
(..)»
O resto do texto está na revista. Mas aproveito para responder à dúvida de Daniel Melo na caixa de comentários do penúltimo post: houve consensos mínimos nas décadas de 20 e 30, de facto, mas tão mínimos que deu no que sabemos…
sexta-feira, 4 de maio de 2007
A minha liberdade passa pelo tabaco
A função da lei, numa democracia moderna, é garantir direitos. Não só os individuais, mas desde logo os individuais. Isto é assim há muito, ainda antes de haver uma teorização das liberdades dos Modernos como distintas das dos Antigos. O cerne do problema está em definir o que se pretende do legislador (e, por arrasto, do executivo e do judicial): salvar, ou emendar, o indivíduo e a sociedade; ou ser justo, garantindo a liberdade para promover a mudança sem a forçar, mesmo que com argumentos racionais.
Esta divagação (resumida e superficial) não vem só a propósito da recente proposta de lei anti-tabágica em curso de aprovação, mas também da coincidência da sua discussão com o surgimento de uma plataforma contra a obesidade («a doença do século XXI»), isto num país onde os centros de saúde públicos não garantem os serviços mais elementares (como a otorrinolaringologia). Sem menorizar o problema da obesidade, que é sério e tende a piorar, a pressão para o combater como sendo «a» doença deste século é típica de uma campanha frequente sempre que se quer fazer algo mudar e os argumentos não são muito fortes (já vi promovidas a «doença do século» vários tipos de cancro, a depressão, ‘n’ doenças genéticas…). Promover a obesidade a questão maior neste momento, sem menorizar a necessidade de se fazer prevenção a longo prazo, parece resultar mais de uma vontade estritamente racionalista de promover o bem e a virtude para não ter de garantir coisas mais modestas (mas mais complicadas também) como um acesso equitativo e efectivo a cuidados de saúde primários.
O cúmulo deste espírito virtuoso surge na questão do tabaco. Não se trata de defender a «argumentação» à Pulido Valente, negando o conhecimento dos efeitos do fumo indirecto e falando de nazismo. Trata-se, de novo, de saber qual a função da lei no enquadramento do consumo do tabaco: promover a virtude ou regular de forma justa uma prática social instalada (e já em diminuição, por força de campanhas e limitações à publicidade, eficientes e sem necessidade de agravamentos como os que têm sucedido recentemente)? Como é sempre necessário fazer uma declaração de interesses nestes casos, aqui fica a minha: cresci num ambiente carregado de fumo indirecto, fumei vagamente na adolescência, nunca fui viciado nem tive até agora problemas relacionados com fumo, e hoje raramente me apetece fumar. Justamente por tudo isto, é contra a minha liberdade, e não apenas contra a dos fumadores, que a rigidez prevista na legislação agora em discussão, é contra a minha liberdade, repito, que se faz semelhante lei. Quando se instaura como princípio a denúncia de fumadores, está a abrir-se caminho para se fazer o mesmo, sempre em nome da virtude e do bem geral, com bebedores (mesmo que moderados), ouvintes de música considerada barulhenta, etc. Já nem é só a desproporção da punição sobre o consumo de tabaco ser maior do que a sobre o consumo de droga, ou em se insistir que o tabaco incomoda terceiros e tem custos hospitalares (pois o mesmo pode ser dito das bebidas alcoólicas), ou sequer a hipocrisia de se manter a Tabaqueira legal enquanto se criminaliza o consumo dos seus produtos. O problema está na instrumentalização da lei, que em vez de regular as relações sociais (de novo, coisa modesta mas exigente, como o não cumprimento de leis como a da poluição sonora exibe), vem forçar uma mudança social que, convém lembrar, já se está a produzir voluntariamente.
Usar os estudos que demonstram os efeitos indirectos do tabaco para promover mudança social (como se alguém vivesse permanentemente num restaurante a inspirar o fumo de outros) é dar mau uso a ciência válida. Usar razões verdadeiras, como a dos custos hospitalares, para visar especificamente uma prática social é abrir o caminho para a virtude forçada em qualquer área. Tratar os cidadãos (adultos, claro; proibir o acesso de menores a certos produtos é apenas lógico) como incapazes, seja de escolher os espaços públicos que frequentam, seja de escolher o que comem (e o que dão de comer aos seus filhos), é trocar o estado justo, que Portugal está longe de ser, por um estado virtuoso por definição, o que sempre resulta em sociedades insuportáveis. E insustentáveis. Restrições ao consumo de tabaco, ou ao de certos alimentos, são lógicas e por vezes até necessárias; mas fazer delas questões meramente administrativas quando elas envolvem práticas sociais com evolução própria (consumo de tabaco) e influência na conduta familiar (como a responsabilização dos pais pelos filhos) não é fazer política de Estado de direito democrático, é fazer engenharia social sem necessidade nem oportunidade. Pior fica quando tanto há ainda por fazer em termos de cuidados de saúde como há em Portugal…
Esta divagação (resumida e superficial) não vem só a propósito da recente proposta de lei anti-tabágica em curso de aprovação, mas também da coincidência da sua discussão com o surgimento de uma plataforma contra a obesidade («a doença do século XXI»), isto num país onde os centros de saúde públicos não garantem os serviços mais elementares (como a otorrinolaringologia). Sem menorizar o problema da obesidade, que é sério e tende a piorar, a pressão para o combater como sendo «a» doença deste século é típica de uma campanha frequente sempre que se quer fazer algo mudar e os argumentos não são muito fortes (já vi promovidas a «doença do século» vários tipos de cancro, a depressão, ‘n’ doenças genéticas…). Promover a obesidade a questão maior neste momento, sem menorizar a necessidade de se fazer prevenção a longo prazo, parece resultar mais de uma vontade estritamente racionalista de promover o bem e a virtude para não ter de garantir coisas mais modestas (mas mais complicadas também) como um acesso equitativo e efectivo a cuidados de saúde primários.
O cúmulo deste espírito virtuoso surge na questão do tabaco. Não se trata de defender a «argumentação» à Pulido Valente, negando o conhecimento dos efeitos do fumo indirecto e falando de nazismo. Trata-se, de novo, de saber qual a função da lei no enquadramento do consumo do tabaco: promover a virtude ou regular de forma justa uma prática social instalada (e já em diminuição, por força de campanhas e limitações à publicidade, eficientes e sem necessidade de agravamentos como os que têm sucedido recentemente)? Como é sempre necessário fazer uma declaração de interesses nestes casos, aqui fica a minha: cresci num ambiente carregado de fumo indirecto, fumei vagamente na adolescência, nunca fui viciado nem tive até agora problemas relacionados com fumo, e hoje raramente me apetece fumar. Justamente por tudo isto, é contra a minha liberdade, e não apenas contra a dos fumadores, que a rigidez prevista na legislação agora em discussão, é contra a minha liberdade, repito, que se faz semelhante lei. Quando se instaura como princípio a denúncia de fumadores, está a abrir-se caminho para se fazer o mesmo, sempre em nome da virtude e do bem geral, com bebedores (mesmo que moderados), ouvintes de música considerada barulhenta, etc. Já nem é só a desproporção da punição sobre o consumo de tabaco ser maior do que a sobre o consumo de droga, ou em se insistir que o tabaco incomoda terceiros e tem custos hospitalares (pois o mesmo pode ser dito das bebidas alcoólicas), ou sequer a hipocrisia de se manter a Tabaqueira legal enquanto se criminaliza o consumo dos seus produtos. O problema está na instrumentalização da lei, que em vez de regular as relações sociais (de novo, coisa modesta mas exigente, como o não cumprimento de leis como a da poluição sonora exibe), vem forçar uma mudança social que, convém lembrar, já se está a produzir voluntariamente.
Usar os estudos que demonstram os efeitos indirectos do tabaco para promover mudança social (como se alguém vivesse permanentemente num restaurante a inspirar o fumo de outros) é dar mau uso a ciência válida. Usar razões verdadeiras, como a dos custos hospitalares, para visar especificamente uma prática social é abrir o caminho para a virtude forçada em qualquer área. Tratar os cidadãos (adultos, claro; proibir o acesso de menores a certos produtos é apenas lógico) como incapazes, seja de escolher os espaços públicos que frequentam, seja de escolher o que comem (e o que dão de comer aos seus filhos), é trocar o estado justo, que Portugal está longe de ser, por um estado virtuoso por definição, o que sempre resulta em sociedades insuportáveis. E insustentáveis. Restrições ao consumo de tabaco, ou ao de certos alimentos, são lógicas e por vezes até necessárias; mas fazer delas questões meramente administrativas quando elas envolvem práticas sociais com evolução própria (consumo de tabaco) e influência na conduta familiar (como a responsabilização dos pais pelos filhos) não é fazer política de Estado de direito democrático, é fazer engenharia social sem necessidade nem oportunidade. Pior fica quando tanto há ainda por fazer em termos de cuidados de saúde como há em Portugal…
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quarta-feira, 2 de maio de 2007
O País do Absurdo
A Imprensa Nacional devolve este mês ao público uma obra póstuma de Adolfo Casais Monteiro (Porto, 1908- São Paulo, 1972), O País do Absurdo. Agora integrada nas Obras Completas em curso de publicação na INCM, esta recolha de textos políticos escritos em jornais brasileiros sobretudo na década de 1950, surgida em Portugal em 1975 (ed. República, Lisboa), vai provavelmente conhecer o mesmo silêncio que as outras obras de Casais, mas aqui fica referenciada, com um excerto (o final) do prefácio que escrevi para esta edição:
Apesar de tanto que ainda está por estudar sobre o período das décadas de 1920 e 1930 em Portugal, algo há que se pode já afirmar sem receio de errar: a reflexão política era intensa e tentava ser original. Não espanta que assim fosse, atendendo às dificuldades da I República às convulsões políticas da Europa da época. Mas é preciso lembrá-lo, pois quase todo o manancial de textos surgido na altura está hoje perdido ou esquecido. Disperso por polémicas em revistas e jornais de vida breve e periodicidade incerta, precariamente recolhido em livros hoje muitas vezes inacessíveis (apesar do esforço de recuperação de alguns pela INCM), fragmentariamente descrito em múltiplas cartas pessoais há muito esquecidas ou por reler, esse complexo enorme de pensamento, discussão, associação e mesmo criação de formas políticas está hoje praticamente reduzido à evocação ocasional de uma ou outra polémica de Sérgio, Proença e pouco mais. Entre estes referimos já um nome: Álvaro Ribeiro. Não devemos estranhar a referência simpática a um autor à época muito malquisto entre intelectuais progressistas (pense-se no que escreveu sobre ele, sensivelmente à mesma data, Eduardo Lourenço). É, afinal, uma reminiscência da juventude política de Casais, nos anos 20, quando todos os grupos que agora damos por bem distintos se cruzaram e actuaram em articulações surpreendentes aos nossos olhos, que lhes conhecemos o devir das décadas seguintes. Num desses grupos, o da Renovação Democrática, esteve Casais Monteiro, e embora muito se tenha afastado dele depois, não deixou ainda assim de guardar algumas marcas dessa experiência. Acima de todas, a suspeita quanto à bondade política do liberalismo económico, patente em tantas observações destes textos. Com efeito, essa suspeita, a princípio completa descrença, teve a sua origem no Grupo da Renovação Democrática, inspirado nas teses anarquistas de Leonardo Coimbra (o qual, contudo, nunca se integrou no movimento como os seus membros pretendiam) e animado por Álvaro Ribeiro, acompanhado por vários outros intelectuais sobretudo do norte entre os quais se contava Casais Monteiro. Com actividade irregular e de escassa repercussão pública, o grupo não logrou atingir as metas do seu ambicioso programa. Mas vale a pena determo-nos por instantes nele e identificarmos algumas das suas ideias centrais para melhor entendermos a evolução das atitudes políticas de Casais até atingirem a forma que neste livro se revela[1].
O «Grupo Renovação Democrática» teve uma história atribulada e obscura, como é norma nestes casos. Antecedido por um outro de vida breve («Acção Republicana», em 1926), surge em Fevereiro de 1932, em pleno debate constitucional, e assim que o Estado Novo se fortalece, desaparece (apesar de ter tentado institucionalizar-se como Partido de Renovação Democrática, em 1933, logo se suspende, sendo formalmente extinto em 1935). Apresentando o seu manifesto «A organização da democracia» em 1933, como «réplica ao livro de Quirino de Jesus Nacionalismo Português» (Porto, 1932) o grupo surgia como defensor de uma concepção de democracia bem distinta da que viria a vingar sob a fórmula «democracia orgânica» no regime corporativo do Estado Novo. Não cabe aqui analisar pormenorizadamente as propostas do grupo (já estudadas no trabalho mencionado de António Pedro Mesquita) nem a sua relação com outros projectos políticos de então (esquematizada no estudo já referido de António Braz Teixeira). Todavia é útil atentar em alguns aspectos que, em torno daquela relação conflituosa com o liberalismo, caracterizaram esta proposta política constitucional («estatutária», para usar o termos querido aos autores) e que deixarão marcas nas reflexões posteriores de Casais.
A desconfiança face ao liberalismo económico é capital, por anular qualquer convicção no liberalismo político como forma de assegurar a liberdade dos indivíduos. Com o tempo, Casais afastar-se-á do fundo anarquista desta desconfiança e, assim, da influência de Leonardo Coimbra. Tal não é de estranhar pois, como já referimos, nestes textos (e noutros, claro) é evidente a adesão de Casais à leitura da História de Portugal desenvolvida por António Sérgio e aos seus pressupostos teóricos demoliberais.
O «democratismo» do grupo, desenvolvido e divulgado sobretudo por Álvaro Ribeiro é afinal um programa libertário, mais estruturado que a crítica social anarquista (aqui a influência de Domingos Monteiro na redacção dos textos não terá sido inferior à de Álvaro Ribeiro, racionalizando e contextualizando o anarquismo), e visa sobretudo a classe liberal – e republicana – por excelência, a burguesia. Sem que as publicações e acção desenvolvidas no Brasil a partir da década de 1950 atinjam alguma vez a elaboração especulativa dos textos da Renovação Democrática, a oposição de Casais face à burguesia portuguesa e sua influência na sociedade não se alteraram substancialmente. Tal como nos textos do grupo da sua juventude, é em torno deste tópico que as expressões de contestação e confrontação mais veementes e brutais tendem a surgir.
Também a a-sistematicidade da reflexão política (em sentido não disciplinar: jurídica, filosófica, sociológica, histórica) se manteve em grande parte. Casais nunca foi um teórico do fenómeno político e, embora muitas das suas páginas sobre as ocorrências da política sejam lúcidas, inteligentes e honestas, não adquirem por isso uma unidade teórica apreciável (que Casais, em rigor, não parece ter procurado). Mesmo não caindo já no uso de linguagens privadas como a do Grupo Renovação Democrática, mesmo sem subordinar a política à metafísica, Adolfo Casais Monteiro permanece fiel a uma concepção maximalista de democracia, como regime e não como sistema de governo. Esta concepção é clássica, e lógica, aplicando-se a sociedades pouco numerosas e menos complexas que as modernas; nelas a democracia pode funcionar de forma directa, ou quase, elidindo assim muitos dos problemas da representação política e dos limites do poder executivo que tanto preocupavam os jovens da Renovação Democrática. Porém, numa sociedade moderna, mesmo numa com tantos elementos típicos de sociedades tradicionais como era a portuguesa, a não diferenciação entre o regime político da colectividade (no caso, República), caracterizador das relações entre os membros da sociedade, e o sistema de governo (democrático, como tendencialmente se verifica nas repúblicas), instrumento consentido de regulação da vida em comum, acarreta uma concepção de democracia tão ampla nas suas atribuições cívicas e tão frágil na sua capacidade executiva que a reduz a um regime impotente por debilidade governativa endémica. Foi o que sucedeu, em parte, à I República, e foi o que se verificou, em grau ainda maior, com as propostas do Grupo Renovação Democrática. A lição que Casais Monteiro colheu destes revezes foi simples, privilegiando na vida de oposicionista no Brasil a ligação a estruturas institucionalizadas (as conferências da Amnistia por exemplo) e o enquadramento em debates políticos de âmbito internacional (questões coloniais europeias). Mas sempre de forma não sistemática.
Não se espere, portanto, encontrar nas páginas deste livro um programa político solidamente estruturado e argumentado. É toda uma outra reflexão, bem mais pessoal e testemunhal, que nestas páginas se pode ler. E poucas memórias serão mais elucidativas sobre um modo particular de sentir e discutir Portugal que estas, escritas do outro lado do Oceano. Não há por que pedir mais.
[1] Além da consulta, longe de exaustiva, dos espólios de Adolfo Casais Monteiro e Álvaro Ribeiro, depositados na Biblioteca Nacional de Lisboa, baseamo-nos para esta síntese nos textos de António Braz Teixeira («Conceito e Formas de Democracia em Portugal, na primeira metade do Século XX»), a editar em volume homónimo das edições Sílabo, Lisboa, este ano, e de António Pedro Mesquita («Um projecto de renovação democrática nos anos 30»), publicado nas Actas do colóquio ocorrido em Dezembro de 2005 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto dedicado a Álvaro Ribeiro, publicado pela INCM em 2006.
Apesar de tanto que ainda está por estudar sobre o período das décadas de 1920 e 1930 em Portugal, algo há que se pode já afirmar sem receio de errar: a reflexão política era intensa e tentava ser original. Não espanta que assim fosse, atendendo às dificuldades da I República às convulsões políticas da Europa da época. Mas é preciso lembrá-lo, pois quase todo o manancial de textos surgido na altura está hoje perdido ou esquecido. Disperso por polémicas em revistas e jornais de vida breve e periodicidade incerta, precariamente recolhido em livros hoje muitas vezes inacessíveis (apesar do esforço de recuperação de alguns pela INCM), fragmentariamente descrito em múltiplas cartas pessoais há muito esquecidas ou por reler, esse complexo enorme de pensamento, discussão, associação e mesmo criação de formas políticas está hoje praticamente reduzido à evocação ocasional de uma ou outra polémica de Sérgio, Proença e pouco mais. Entre estes referimos já um nome: Álvaro Ribeiro. Não devemos estranhar a referência simpática a um autor à época muito malquisto entre intelectuais progressistas (pense-se no que escreveu sobre ele, sensivelmente à mesma data, Eduardo Lourenço). É, afinal, uma reminiscência da juventude política de Casais, nos anos 20, quando todos os grupos que agora damos por bem distintos se cruzaram e actuaram em articulações surpreendentes aos nossos olhos, que lhes conhecemos o devir das décadas seguintes. Num desses grupos, o da Renovação Democrática, esteve Casais Monteiro, e embora muito se tenha afastado dele depois, não deixou ainda assim de guardar algumas marcas dessa experiência. Acima de todas, a suspeita quanto à bondade política do liberalismo económico, patente em tantas observações destes textos. Com efeito, essa suspeita, a princípio completa descrença, teve a sua origem no Grupo da Renovação Democrática, inspirado nas teses anarquistas de Leonardo Coimbra (o qual, contudo, nunca se integrou no movimento como os seus membros pretendiam) e animado por Álvaro Ribeiro, acompanhado por vários outros intelectuais sobretudo do norte entre os quais se contava Casais Monteiro. Com actividade irregular e de escassa repercussão pública, o grupo não logrou atingir as metas do seu ambicioso programa. Mas vale a pena determo-nos por instantes nele e identificarmos algumas das suas ideias centrais para melhor entendermos a evolução das atitudes políticas de Casais até atingirem a forma que neste livro se revela[1].
O «Grupo Renovação Democrática» teve uma história atribulada e obscura, como é norma nestes casos. Antecedido por um outro de vida breve («Acção Republicana», em 1926), surge em Fevereiro de 1932, em pleno debate constitucional, e assim que o Estado Novo se fortalece, desaparece (apesar de ter tentado institucionalizar-se como Partido de Renovação Democrática, em 1933, logo se suspende, sendo formalmente extinto em 1935). Apresentando o seu manifesto «A organização da democracia» em 1933, como «réplica ao livro de Quirino de Jesus Nacionalismo Português» (Porto, 1932) o grupo surgia como defensor de uma concepção de democracia bem distinta da que viria a vingar sob a fórmula «democracia orgânica» no regime corporativo do Estado Novo. Não cabe aqui analisar pormenorizadamente as propostas do grupo (já estudadas no trabalho mencionado de António Pedro Mesquita) nem a sua relação com outros projectos políticos de então (esquematizada no estudo já referido de António Braz Teixeira). Todavia é útil atentar em alguns aspectos que, em torno daquela relação conflituosa com o liberalismo, caracterizaram esta proposta política constitucional («estatutária», para usar o termos querido aos autores) e que deixarão marcas nas reflexões posteriores de Casais.
A desconfiança face ao liberalismo económico é capital, por anular qualquer convicção no liberalismo político como forma de assegurar a liberdade dos indivíduos. Com o tempo, Casais afastar-se-á do fundo anarquista desta desconfiança e, assim, da influência de Leonardo Coimbra. Tal não é de estranhar pois, como já referimos, nestes textos (e noutros, claro) é evidente a adesão de Casais à leitura da História de Portugal desenvolvida por António Sérgio e aos seus pressupostos teóricos demoliberais.
O «democratismo» do grupo, desenvolvido e divulgado sobretudo por Álvaro Ribeiro é afinal um programa libertário, mais estruturado que a crítica social anarquista (aqui a influência de Domingos Monteiro na redacção dos textos não terá sido inferior à de Álvaro Ribeiro, racionalizando e contextualizando o anarquismo), e visa sobretudo a classe liberal – e republicana – por excelência, a burguesia. Sem que as publicações e acção desenvolvidas no Brasil a partir da década de 1950 atinjam alguma vez a elaboração especulativa dos textos da Renovação Democrática, a oposição de Casais face à burguesia portuguesa e sua influência na sociedade não se alteraram substancialmente. Tal como nos textos do grupo da sua juventude, é em torno deste tópico que as expressões de contestação e confrontação mais veementes e brutais tendem a surgir.
Também a a-sistematicidade da reflexão política (em sentido não disciplinar: jurídica, filosófica, sociológica, histórica) se manteve em grande parte. Casais nunca foi um teórico do fenómeno político e, embora muitas das suas páginas sobre as ocorrências da política sejam lúcidas, inteligentes e honestas, não adquirem por isso uma unidade teórica apreciável (que Casais, em rigor, não parece ter procurado). Mesmo não caindo já no uso de linguagens privadas como a do Grupo Renovação Democrática, mesmo sem subordinar a política à metafísica, Adolfo Casais Monteiro permanece fiel a uma concepção maximalista de democracia, como regime e não como sistema de governo. Esta concepção é clássica, e lógica, aplicando-se a sociedades pouco numerosas e menos complexas que as modernas; nelas a democracia pode funcionar de forma directa, ou quase, elidindo assim muitos dos problemas da representação política e dos limites do poder executivo que tanto preocupavam os jovens da Renovação Democrática. Porém, numa sociedade moderna, mesmo numa com tantos elementos típicos de sociedades tradicionais como era a portuguesa, a não diferenciação entre o regime político da colectividade (no caso, República), caracterizador das relações entre os membros da sociedade, e o sistema de governo (democrático, como tendencialmente se verifica nas repúblicas), instrumento consentido de regulação da vida em comum, acarreta uma concepção de democracia tão ampla nas suas atribuições cívicas e tão frágil na sua capacidade executiva que a reduz a um regime impotente por debilidade governativa endémica. Foi o que sucedeu, em parte, à I República, e foi o que se verificou, em grau ainda maior, com as propostas do Grupo Renovação Democrática. A lição que Casais Monteiro colheu destes revezes foi simples, privilegiando na vida de oposicionista no Brasil a ligação a estruturas institucionalizadas (as conferências da Amnistia por exemplo) e o enquadramento em debates políticos de âmbito internacional (questões coloniais europeias). Mas sempre de forma não sistemática.
Não se espere, portanto, encontrar nas páginas deste livro um programa político solidamente estruturado e argumentado. É toda uma outra reflexão, bem mais pessoal e testemunhal, que nestas páginas se pode ler. E poucas memórias serão mais elucidativas sobre um modo particular de sentir e discutir Portugal que estas, escritas do outro lado do Oceano. Não há por que pedir mais.
[1] Além da consulta, longe de exaustiva, dos espólios de Adolfo Casais Monteiro e Álvaro Ribeiro, depositados na Biblioteca Nacional de Lisboa, baseamo-nos para esta síntese nos textos de António Braz Teixeira («Conceito e Formas de Democracia em Portugal, na primeira metade do Século XX»), a editar em volume homónimo das edições Sílabo, Lisboa, este ano, e de António Pedro Mesquita («Um projecto de renovação democrática nos anos 30»), publicado nas Actas do colóquio ocorrido em Dezembro de 2005 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto dedicado a Álvaro Ribeiro, publicado pela INCM em 2006.
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