quarta-feira, 2 de maio de 2007

O País do Absurdo

A Imprensa Nacional devolve este mês ao público uma obra póstuma de Adolfo Casais Monteiro (Porto, 1908- São Paulo, 1972), O País do Absurdo. Agora integrada nas Obras Completas em curso de publicação na INCM, esta recolha de textos políticos escritos em jornais brasileiros sobretudo na década de 1950, surgida em Portugal em 1975 (ed. República, Lisboa), vai provavelmente conhecer o mesmo silêncio que as outras obras de Casais, mas aqui fica referenciada, com um excerto (o final) do prefácio que escrevi para esta edição:


Apesar de tanto que ainda está por estudar sobre o período das décadas de 1920 e 1930 em Portugal, algo há que se pode já afirmar sem receio de errar: a reflexão política era intensa e tentava ser original. Não espanta que assim fosse, atendendo às dificuldades da I República às convulsões políticas da Europa da época. Mas é preciso lembrá-lo, pois quase todo o manancial de textos surgido na altura está hoje perdido ou esquecido. Disperso por polémicas em revistas e jornais de vida breve e periodicidade incerta, precariamente recolhido em livros hoje muitas vezes inacessíveis (apesar do esforço de recuperação de alguns pela INCM), fragmentariamente descrito em múltiplas cartas pessoais há muito esquecidas ou por reler, esse complexo enorme de pensamento, discussão, associação e mesmo criação de formas políticas está hoje praticamente reduzido à evocação ocasional de uma ou outra polémica de Sérgio, Proença e pouco mais. Entre estes referimos já um nome: Álvaro Ribeiro. Não devemos estranhar a referência simpática a um autor à época muito malquisto entre intelectuais progressistas (pense-se no que escreveu sobre ele, sensivelmente à mesma data, Eduardo Lourenço). É, afinal, uma reminiscência da juventude política de Casais, nos anos 20, quando todos os grupos que agora damos por bem distintos se cruzaram e actuaram em articulações surpreendentes aos nossos olhos, que lhes conhecemos o devir das décadas seguintes. Num desses grupos, o da Renovação Democrática, esteve Casais Monteiro, e embora muito se tenha afastado dele depois, não deixou ainda assim de guardar algumas marcas dessa experiência. Acima de todas, a suspeita quanto à bondade política do liberalismo económico, patente em tantas observações destes textos. Com efeito, essa suspeita, a princípio completa descrença, teve a sua origem no Grupo da Renovação Democrática, inspirado nas teses anarquistas de Leonardo Coimbra (o qual, contudo, nunca se integrou no movimento como os seus membros pretendiam) e animado por Álvaro Ribeiro, acompanhado por vários outros intelectuais sobretudo do norte entre os quais se contava Casais Monteiro. Com actividade irregular e de escassa repercussão pública, o grupo não logrou atingir as metas do seu ambicioso programa. Mas vale a pena determo-nos por instantes nele e identificarmos algumas das suas ideias centrais para melhor entendermos a evolução das atitudes políticas de Casais até atingirem a forma que neste livro se revela[1].
O «Grupo Renovação Democrática» teve uma história atribulada e obscura, como é norma nestes casos. Antecedido por um outro de vida breve («Acção Republicana», em 1926), surge em Fevereiro de 1932, em pleno debate constitucional, e assim que o Estado Novo se fortalece, desaparece (apesar de ter tentado institucionalizar-se como Partido de Renovação Democrática, em 1933, logo se suspende, sendo formalmente extinto em 1935). Apresentando o seu manifesto «A organização da democracia» em 1933, como «réplica ao livro de Quirino de Jesus Nacionalismo Português» (Porto, 1932) o grupo surgia como defensor de uma concepção de democracia bem distinta da que viria a vingar sob a fórmula «democracia orgânica» no regime corporativo do Estado Novo. Não cabe aqui analisar pormenorizadamente as propostas do grupo (já estudadas no trabalho mencionado de António Pedro Mesquita) nem a sua relação com outros projectos políticos de então (esquematizada no estudo já referido de António Braz Teixeira). Todavia é útil atentar em alguns aspectos que, em torno daquela relação conflituosa com o liberalismo, caracterizaram esta proposta política constitucional («estatutária», para usar o termos querido aos autores) e que deixarão marcas nas reflexões posteriores de Casais.
A desconfiança face ao liberalismo económico é capital, por anular qualquer convicção no liberalismo político como forma de assegurar a liberdade dos indivíduos. Com o tempo, Casais afastar-se-á do fundo anarquista desta desconfiança e, assim, da influência de Leonardo Coimbra. Tal não é de estranhar pois, como já referimos, nestes textos (e noutros, claro) é evidente a adesão de Casais à leitura da História de Portugal desenvolvida por António Sérgio e aos seus pressupostos teóricos demoliberais.
O «democratismo» do grupo, desenvolvido e divulgado sobretudo por Álvaro Ribeiro é afinal um programa libertário, mais estruturado que a crítica social anarquista (aqui a influência de Domingos Monteiro na redacção dos textos não terá sido inferior à de Álvaro Ribeiro, racionalizando e contextualizando o anarquismo), e visa sobretudo a classe liberal – e republicana – por excelência, a burguesia. Sem que as publicações e acção desenvolvidas no Brasil a partir da década de 1950 atinjam alguma vez a elaboração especulativa dos textos da Renovação Democrática, a oposição de Casais face à burguesia portuguesa e sua influência na sociedade não se alteraram substancialmente. Tal como nos textos do grupo da sua juventude, é em torno deste tópico que as expressões de contestação e confrontação mais veementes e brutais tendem a surgir.
Também a a-sistematicidade da reflexão política (em sentido não disciplinar: jurídica, filosófica, sociológica, histórica) se manteve em grande parte. Casais nunca foi um teórico do fenómeno político e, embora muitas das suas páginas sobre as ocorrências da política sejam lúcidas, inteligentes e honestas, não adquirem por isso uma unidade teórica apreciável (que Casais, em rigor, não parece ter procurado). Mesmo não caindo já no uso de linguagens privadas como a do Grupo Renovação Democrática, mesmo sem subordinar a política à metafísica, Adolfo Casais Monteiro permanece fiel a uma concepção maximalista de democracia, como regime e não como sistema de governo. Esta concepção é clássica, e lógica, aplicando-se a sociedades pouco numerosas e menos complexas que as modernas; nelas a democracia pode funcionar de forma directa, ou quase, elidindo assim muitos dos problemas da representação política e dos limites do poder executivo que tanto preocupavam os jovens da Renovação Democrática. Porém, numa sociedade moderna, mesmo numa com tantos elementos típicos de sociedades tradicionais como era a portuguesa, a não diferenciação entre o regime político da colectividade (no caso, República), caracterizador das relações entre os membros da sociedade, e o sistema de governo (democrático, como tendencialmente se verifica nas repúblicas), instrumento consentido de regulação da vida em comum, acarreta uma concepção de democracia tão ampla nas suas atribuições cívicas e tão frágil na sua capacidade executiva que a reduz a um regime impotente por debilidade governativa endémica. Foi o que sucedeu, em parte, à I República, e foi o que se verificou, em grau ainda maior, com as propostas do Grupo Renovação Democrática. A lição que Casais Monteiro colheu destes revezes foi simples, privilegiando na vida de oposicionista no Brasil a ligação a estruturas institucionalizadas (as conferências da Amnistia por exemplo) e o enquadramento em debates políticos de âmbito internacional (questões coloniais europeias). Mas sempre de forma não sistemática.
Não se espere, portanto, encontrar nas páginas deste livro um programa político solidamente estruturado e argumentado. É toda uma outra reflexão, bem mais pessoal e testemunhal, que nestas páginas se pode ler. E poucas memórias serão mais elucidativas sobre um modo particular de sentir e discutir Portugal que estas, escritas do outro lado do Oceano. Não há por que pedir mais.
[1] Além da consulta, longe de exaustiva, dos espólios de Adolfo Casais Monteiro e Álvaro Ribeiro, depositados na Biblioteca Nacional de Lisboa, baseamo-nos para esta síntese nos textos de António Braz Teixeira («Conceito e Formas de Democracia em Portugal, na primeira metade do Século XX»), a editar em volume homónimo das edições Sílabo, Lisboa, este ano, e de António Pedro Mesquita («Um projecto de renovação democrática nos anos 30»), publicado nas Actas do colóquio ocorrido em Dezembro de 2005 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto dedicado a Álvaro Ribeiro, publicado pela INCM em 2006.

2 comentários:

Daniel Melo disse...

Parabéns por esta amostra, acho que já tinha passado os olhos por esta passagem algures, terá sido no Esplanar?
A talhe de foice, fiquei um pouco curioso quanto à questão da indistinção entre sistema e regime político ["a não diferenciação entre o regime político da colectividade (no caso, República), caracterizador das relações entre os membros da sociedade, e o sistema de governo (democrático, como tendencialmente se verifica nas repúblicas), instrumento consentido de regulação da vida em comum, acarreta uma concepção de democracia tão ampla nas suas atribuições cívicas e tão frágil na sua capacidade executiva que a reduz a um regime impotente por debilidade governativa endémica"]. Isso implicava não haver consensos quanto à governação efectiva, pontos de convergência mínimos?
Concordo, os anos 20-30 são muitos ricos em termos de debate de ideias. Parece-me perpassar na prosa do Leone uma certa tristeza cúmplice, será possível?

CLeone disse...

Quanto á tristeza, sim, alguma, mas muito indefinida, sem cumplicidade (ou amizade, como prefiro). A propósito: posso ser Carlos, a menos que aopção pelo leone seja propositada (e não me incomoda, claro).
Sobre o que publiquei, é inédito. No Esplanar, na nossa polémic com o bruno dos AMigos do Povo, citei v´rias passagens do próprio Casais neste livro. De novo, a proximidade, amizade, cumplicidade, deve fazer sentir-se-
Última coisa; não eprcebi bem a tua questão sobre o ponto regime /sistema, mas na semana que vem vou psotar aqui algo sobre isso.