sexta-feira, 4 de maio de 2007

A minha liberdade passa pelo tabaco

A função da lei, numa democracia moderna, é garantir direitos. Não só os individuais, mas desde logo os individuais. Isto é assim há muito, ainda antes de haver uma teorização das liberdades dos Modernos como distintas das dos Antigos. O cerne do problema está em definir o que se pretende do legislador (e, por arrasto, do executivo e do judicial): salvar, ou emendar, o indivíduo e a sociedade; ou ser justo, garantindo a liberdade para promover a mudança sem a forçar, mesmo que com argumentos racionais.
Esta divagação (resumida e superficial) não vem só a propósito da recente proposta de lei anti-tabágica em curso de aprovação, mas também da coincidência da sua discussão com o surgimento de uma plataforma contra a obesidade («a doença do século XXI»), isto num país onde os centros de saúde públicos não garantem os serviços mais elementares (como a otorrinolaringologia). Sem menorizar o problema da obesidade, que é sério e tende a piorar, a pressão para o combater como sendo «a» doença deste século é típica de uma campanha frequente sempre que se quer fazer algo mudar e os argumentos não são muito fortes (já vi promovidas a «doença do século» vários tipos de cancro, a depressão, ‘n’ doenças genéticas…). Promover a obesidade a questão maior neste momento, sem menorizar a necessidade de se fazer prevenção a longo prazo, parece resultar mais de uma vontade estritamente racionalista de promover o bem e a virtude para não ter de garantir coisas mais modestas (mas mais complicadas também) como um acesso equitativo e efectivo a cuidados de saúde primários.
O cúmulo deste espírito virtuoso surge na questão do tabaco. Não se trata de defender a «argumentação» à Pulido Valente, negando o conhecimento dos efeitos do fumo indirecto e falando de nazismo. Trata-se, de novo, de saber qual a função da lei no enquadramento do consumo do tabaco: promover a virtude ou regular de forma justa uma prática social instalada (e já em diminuição, por força de campanhas e limitações à publicidade, eficientes e sem necessidade de agravamentos como os que têm sucedido recentemente)? Como é sempre necessário fazer uma declaração de interesses nestes casos, aqui fica a minha: cresci num ambiente carregado de fumo indirecto, fumei vagamente na adolescência, nunca fui viciado nem tive até agora problemas relacionados com fumo, e hoje raramente me apetece fumar. Justamente por tudo isto, é contra a minha liberdade, e não apenas contra a dos fumadores, que a rigidez prevista na legislação agora em discussão, é contra a minha liberdade, repito, que se faz semelhante lei. Quando se instaura como princípio a denúncia de fumadores, está a abrir-se caminho para se fazer o mesmo, sempre em nome da virtude e do bem geral, com bebedores (mesmo que moderados), ouvintes de música considerada barulhenta, etc. Já nem é só a desproporção da punição sobre o consumo de tabaco ser maior do que a sobre o consumo de droga, ou em se insistir que o tabaco incomoda terceiros e tem custos hospitalares (pois o mesmo pode ser dito das bebidas alcoólicas), ou sequer a hipocrisia de se manter a Tabaqueira legal enquanto se criminaliza o consumo dos seus produtos. O problema está na instrumentalização da lei, que em vez de regular as relações sociais (de novo, coisa modesta mas exigente, como o não cumprimento de leis como a da poluição sonora exibe), vem forçar uma mudança social que, convém lembrar, já se está a produzir voluntariamente.
Usar os estudos que demonstram os efeitos indirectos do tabaco para promover mudança social (como se alguém vivesse permanentemente num restaurante a inspirar o fumo de outros) é dar mau uso a ciência válida. Usar razões verdadeiras, como a dos custos hospitalares, para visar especificamente uma prática social é abrir o caminho para a virtude forçada em qualquer área. Tratar os cidadãos (adultos, claro; proibir o acesso de menores a certos produtos é apenas lógico) como incapazes, seja de escolher os espaços públicos que frequentam, seja de escolher o que comem (e o que dão de comer aos seus filhos), é trocar o estado justo, que Portugal está longe de ser, por um estado virtuoso por definição, o que sempre resulta em sociedades insuportáveis. E insustentáveis. Restrições ao consumo de tabaco, ou ao de certos alimentos, são lógicas e por vezes até necessárias; mas fazer delas questões meramente administrativas quando elas envolvem práticas sociais com evolução própria (consumo de tabaco) e influência na conduta familiar (como a responsabilização dos pais pelos filhos) não é fazer política de Estado de direito democrático, é fazer engenharia social sem necessidade nem oportunidade. Pior fica quando tanto há ainda por fazer em termos de cuidados de saúde como há em Portugal…

3 comentários:

Hugo Mendes disse...

Olá Carlos, eu não sou militante anti-tabágico e até acho que esta lei, pelo que vou sabendo do seu conteúdo, é excessiva em vários contornos (por ex., devia deixar ao critério dos prioprietários de certos estabelecimentos se aceitam que lá se fume ou não). Não acautela uma dimensão liberal que eu acho que devia existir.

Mas discordo de outros pontos. Por exemplo, quando dizes:
"O problema está na instrumentalização da lei, que em vez de regular as relações sociais (de novo, coisa modesta mas exigente, como o não cumprimento de leis como a da poluição sonora exibe), vem forçar uma mudança social que, convém lembrar, já se está a produzir voluntariamente."

Eu não acho que a lei deva regular apenas. E lei orienta no sentido que se considere "correcto" (o que é outra discussão) e pune o que se considere como "infracção" (o que é outra discussão). As nossas sociedades estão cheias de engenharia social. Não sei se o argumento, em abstracto, é oportuno. O código da estrada, por exemplo, pode ser considerado engenharia social. A fiscalidade também, etc. A questão é se são "engenharias" justificadas ou não, não que elas existam.

Eu compreendo que esta questão seja delicada do ponto de vista das liberdades individuais, mas independentemente de vivermos ou não todos em restaurantes constantemente :), o problema, do ponto de vista de impacto público, como sabes, não se resume a isto.

E o argumento do "slippery-slope" ("onde é que isto vai parar?") parece-me também de uso dúbio aqui. Porque não o usamos também na questão da IVG ("um dia elas vão poder abortar às 30 semanas")? Ou em qualquer outra questão onde a definição de fronteiras é sempre, no limite, arbitrária. Claro, no limite, é verdade. Mas parece-me que é um pouco a mirror image da questão da obesidade: "se não fizermos nada, onde é que isto vai parar?" Acho que esta discussão devia evitar essa projecção de cenários futuros e incertos.

No fundo, do ponto de vista filosófico, se quiseres, eu acho que aqui se justifica um argumento consequencialista - como na questão da obesidade, sem exageros desnecessários, como bem referes, na dimensão do fenómeno -: importa-me, por exemplo, mais as consequências que o fumo excessivo provoca nas crianças do que a violação da responsabilidade parental. Esta não é absoluta, como se vê, por exemplo, na questão da educação (que é obrigatória e não pode depender do interesse parental).

Mas concordo, há muita coisa para fazer nos cuidados de saúde em Portugal. Mas isso não me parece ser argumento contra uma lei deste género (não necessariamente 'esta' lei); tal como a necessidade de fazer tantas coisas na área do planeamento familiar é justificação, em si, para não se legalizar a IVG (até às 10 semanas).

Um abraço
Hugo

Hugo Mendes disse...

Na última frase:

"tal como a necessidade de fazer tantas coisas na área do planeamento familiar é justificação, em si, para não se legalizar a IVG (até às 10 semanas)."

devia ter escrito:

"tal como a necessidade de fazer tantas coisas na área do planeamento familiar NÃO é justificação, em si, para não se legalizar a IVG (até às 10 semanas)."

CLeone disse...

Eu não usei o argumento slippwry slope, seria determinista, disse até que isso é à VPV. QUanto ao facto de as leis indicarem algo concreto, claro que sim; a questão é que as lei já existentes (limitação ao consumo ja existe, interdição de venda a menores e de publicidade...) já fazem - e com sucesso.