quarta-feira, 9 de maio de 2007

Do (in)determinismo genético

Quando escrevo determinismo genético refiro-me à ideia de que uma determinada característica de um individuo, seja caractaristica física ou o comportamento, é o produto exclusivamente da informação contida nos seus genes. A hipótese alternativa é essa caracteristica ser determinada por factores ambientais. A velha questão "Nature vs Nurture" é tão antiga como a genética, ou talvez mais (em rigor a Genética não é assim tão antiga quanto isso, começa com as experiências de Mendel, que de início são ignoradas e só são redescobertas em 1900).

Na minha opinião esta discussão debate-se a dois níveis que não devem ser confundidos. Primeiro a questão de saber se a característica A ou B é um produto exclusivamente de genes é uma questão técnica/científica. Isso não quer dizer que só especialistas em Genética possam debater o assunto, pelo contrário, todos devem debater. Mas o plano de discussão é científico, quer isso dizer que havendo dados empíricos que indicam que uma característica é determinada geneticamente há que averiguar se os dados corroboram as conclusões, se a metodologia utilizada é correcta, se existem outros dados que os contradigam. O que não pode acontecer é recusar os dados existentes baseado numa opção ideológica, não acreditar nas evidências por não querer acreditar. Se, por exemplo, um trabalho sugere que a homossexualidade tem uma forte componente genética (como este artigo faz), é fazendo uma crítica metodológica que podemos - ou não - discordar, não se pode recusá-lo por uma questão "de princípio".

Depois há um segundo nível de discussão que é ético, moral, e também político. Construindo sobre o conhecimento científico (sem esquecer que este não é nunca definitivo nem imutável), importa discutir como se posicionar relativamente a esse conhecimento. Pegando novamente no exemplo da homossexualidade, e fazendo o exercício de aceitar que ela é determinada geneticamente (actualmente longe de estar provado), temos pelo menos duas atitudes possíveis: uma será de considerar que a homossexualidade é uma anomalia genética, outra é de aceitá-la como parte natural da diversidade genética humana. A questão aqui não é de saber se a homossexualidade é genética, mas de como reagir perante a descoberta que ela é efectivamente Genética.

No primeiro nível de abordagem, o técnico/científico, importa saber se há razões para pensar se aquilo que somos é determinado geneticamente. A questão não é simples, porque depende de saber de que característica em concreto estamos a falar. Por exemplo a cor dos olhos é determinada geneticamente (a não ser que consideremos as lentes de contacto como um factor ambiental). Mas ser determinado geneticamente não significa que há UM gene responsável por essa característica, há pouqíssimos exemplos disso e os que me lembro são doenças (a fibrose cística, a paramiloidose). Geralmente são vários genes contribuem para uma determinada característica, o que torna logo muito mais complicado uma abordagem determinista: se são vários os genes envolvidos, cada indivíduo pode ter uma combinação diferente desses genes, e cada combinação dá um resultado diferente, ou seja cada caso é um caso. Mais ainda, um mesmo gene geralmente contribui para inúmeros processos diferentes, ou seja influencia várias características, o que resulta numa combinação de combinações. O determinismo genético torna-se já dificilmente sustentável, mesmo sem levar em conta a influência de factores ambientais. Pode sempre argumentar-se que é apenas uma questão de limitação dos conhecimentos em Genética, e que com o aprofundar desses conhecimentos o determinismo tornar-se-á possível.

Consideremos então os factores ambientais. Como já referi depende do que estamos a falar, cada característica pode ter uma influência maior ou menor (ou nula mesmo) de factores ambientais. Tentar saber se aquilo que somos globalmente é o produto de factores genéticos ou ambientais é uma questão inabordável e ao mesmo tempo insuficiente. Obviamente que somos o produto de ambos. Mas haverá um modelo global que emerge que explique como factores ambientais e genéticos influenciam aquilo que somos? Na minha opinião sim, mas nunca vendo o resultado final como uma simples soma aritmética de factores ambientais mais factores genéticos. Dando como exemplo a obesidade: dois individuos com o mesmo regime alimentar podem ser um obeso e o outro não, tal como dois gémeos idênticos com dois regimes alimentares diferentes pode um ser obeso e o outro não. Olhando só para o primeiro exemplo diremos que a obesidade é determinada geneticamente, olhando só para o segundo diremos que é determinada por factores ambientais. O paradigma que me parece emergir dos avanços recentes na Genética resolve este paradoxo. Um individuo não é um produto apenas dos seus genes, nem sequer uma soma aritmética da influência dos genes e do ambiente. Um indivíduo é o resultado de uma interacção entre os genes e o ambiente, em que um e outro desempenham papeis diferentes. O papel dos genes é o de determinar os mecanismos pelos quais o indivíduo vai interagir com o ambiente, e o ambiente é uma entidade exterior ao indivíduo que este não pode controlar mas ao qual se pode adaptar. No exemplo da obesidade, os genes não determinam se um indivíduo é obeso, mas determinam sim o seu metabolismo. Se um indivíduo com um metabolismo que tende a armazenar calorias tiver uma dieta rica então será obeso, mas pode sempre adaptar-se alterando a sua dieta. A forma de digerir e a metabolizar os nutrientes é o mecanismo pelo qual o organismo interage com o ambiente, e é determinado geneticamente.

Apetece-me citar o exemplo da inteligência, que é seguramente mais controverso e mais complexo. Controverso e complexo logo para começar porque a inteligência como objecto não está suficientemente definido, é circunstancial. O que para "nós" numa sociedade urbana ocidental é inteligente não é a mesma coisa que um Ameríndio no meio da selva amazónica considera inteligente. Logo enquanto objecto mensurável, para que possamos dizer A é mais inteligente que B, a inteligência está longe de ser establecida. Mas deixemos de lado esta "pequena" limitação, e vamos partir do princípio que a nossa noção intuitiva de inteligência é consensual, e objecto passível de estudo e mensurável. Não existe qualquer evidência que apoie a ideia de que a inteligência é determinada geneticamente, ou seja não foram encontrados genes que possam influenciar a maior ou menor inteligência de uma pessoa. Isso não quer dizer que não venham a ser encontrados tais genes no futuro. Por outro lado a Developmental Neurobiology já encontrou inúmeros genes responsáveis pela arquitectura do cérebero. O desenvolvimento do cérebro como estrura regionalizada, com telencéfalo, hipocampo, córtex prefrontal, e mais uma data de palavrões técnicos, é determinado geneticamente, e ocorre na sua quase totalidade antes do nascimento. Digamos que o desenho da "máquina", do "hardware" é determinado geneticamente, mas isso não faz uma pessoa inteligente, é preciso o "software". Claro que também é preciso que a "máquina" funcione, senão dá um grande "crash", mas isso é o que acontece com as doenças neurodegenerativas por exemplo. Numa situação em que não há uma condição patológica, o factor genético, o tal desenho da máquina não é o factor limitante (atenção que isto não é um dado científico, é apenas uma opinião pessoal, como tal discutível). O tal factor genético quando muito determina um potencial máximo do funcionamento do cérebro, logo da inteligência, mas esse potencial máximo é largamente excessivo relativamente a utilização efectiva que fazemos do cérebro. Mal de nós se algum dia antigirmos a capacidade máxima do nosso cérebro, seria assim como um computador que com o processador e o disco rígido cheios: "crasha", o que suponho seria algo parecido com uma doença de Alzheimer. Penso portanto que toda a evidência indica que o factor genético embora determine o desenvolvimento do cérebro não é limitante quanto à determinação da inteligência. Essa na realidade vai depender do uso que se fizer do cérebro, dos factores ambientais afinal.

Passando ao segundo nível de abordagem: quais as consequências éticas, morais e políticas dos conhecimentos actuais da Genética?
O maior perigo a este nível é o de atribuir um juízo valorativo aos genes. Pelo menos tem sido esse o erro que se tem repetido vezes sem conta ao longo dos tempos (é um perigo que já existia muito antes do nascimento da Genética enquanto Ciência). E é um erro que não é científico, e não vem necessariamente dos cientistas. Atribuir um juízo valorativo aos genes, dizer que um gene A é melhor que um gene B é um erro porque é fundado no preconceito. Foi esse preconceito que levou ao aparecimento do eugenismo. E o perigo é que o preconceito vem disfarçado de verdade científica, e é essa fraude que é necessário desmontar. Este juízo de valor, não é nem pode ser científico pela simples razão que a noção de superioridade é subjectiva, logo não pode nunca ser o produto de uma análise objectiva.

O eugenismo como teoria - que convém lembrar teve muitos adeptos para além do regime nazi - surgiu tendo por objectivo seleccionar uma "raça" geneticamente superior. Esta noção de superioridade, na minha opinião, é um sucedâneo moderno do essencialismo. O essencialismo, no conceito de Platão e Aristóles, estabelece que um indivíduo não é senão uma representação imperfeita da sua essência. No caso do Homem, existe uma essência de Humano, da qual cada um de nós é uma materialização necessariamente imperfeita. Desta noção de essência deriva o conceito de pureza, e da pureza a superioridade. Esta visão nega completamente qualquer noção de diversidade, e estabelece um ideal de pureza, a tal essência, como padrão a que todos os indivíduos estão subordinados. Contudo definir concretamente em que consiste esse ideal de Humano, essa essência, é obviamente uma determinação subjectiva e arbitrária, mas é apresentada pelos eugenistas como uma evidência científica, quando não axiomática. Ironicamente, mas sem que daí se possa inferir qualquer noção de superioridade de sentido contrário, o estudo da Genética de Populações sugere-nos a diversidade é um factor positivo na sobrevivência de uma população ou de uma espécie. Uma hipotética "Raça Pura", monolítica, e sem diversidade genética teria uma forte probabilidade de tender para a extinção a curto prazo.

O debate sobre determinismo genético é particularmente importante e controverso no que respeita ao comportamento, e espeicalmente o comportamento humano. Nos anos 1970 surgiu a Sociobiologia, uma teoria que pretendia aliar o estudo do comportamento com a Evolução Biológica. Embora muito meritório como movimento científico, caiu no erro de um determinismo genético diferente do eugenismo. Sendo que a evolução é o resultado da transmissão de genes de uma geração à seguinte, a Sociobiologia tenta explicar comportamentos conservados evolutivamente exclusivamente numa base genética. No que toca à espécie humana esta visão despreza a transmissão de comportamentos culturalmente. Negligencia que os genes podem determinar não os comportamentos em si, mas um sistema nervoso capaz de transmitir comportamentos culturalmente. Como pode ler-se na página linkada ali em cima (destaque meu):
According to many critics of human sociobiology, standard sociobiological models are inadequate to account for human behavior, because they ignore the contributions of the mind and culture. A second criticism concerns genetic determinism, the view that many social behaviors are genetically fixed. Critics of sociobiology often complain that its reliance on genetic determinism, especially of human behavior, provides tacit approval of the status quo. If male aggression is genetically fixed and reproductively advantageous, critics argue, then male aggression seems to be a biological reality (and, perhaps, a biological ‘good’) about which we have little control. This seems to be both politically dangerous and scientifically implausible.

O eugenismo na sua forma original, como procura de uma raça superior, e de uma forma de pureza não tem hoje muita expressão. Foi abandonado após os excessos cometidos pelo regime nazi. No entanto tem ainda influência numa certa maneira de olhar para os avanços modernos na Genética, em particular com aplicação à Medicina. O "truque" moderno é substituir a noção de pureza por normal, e a inferioridade por doença. Relembre-se as declarações de Sarkozy durante a campanha eleitoral para as eleições francesas, afirmando-se convicto de que "se nasce pedófilo" e que o suicídio de jovens se deve a "uma fragilidade genética". Esta é a versão moderna do eugenismo, e que normalmente não vem da comunidade científica. Quando se ouve declarações destas convém desde logo verificar se estas afirmações têm suporte empírico, o tal primeiro nível do debate que referi no início. Não deixa de ser sintomático que no exemplo de Sarkozy foi a própria comunidade científica que esteve na primeira linha das críticas, precisamente porque não há a mínima evidência para estas afirmações. Convém também ter em atenção o que é considerado como doença ou anomalia, porque é uma fronteira ténue, difícil de manter uma definição objectiva. Aí reside também o perigo, mesmo que uma dada característica seja determinada geneticamente não é necessariamente uma anomalia segundo critérios objectivos, mas pode ser considerada como tal por razões morais ou ideológicas.

5 comentários:

Hugo Mendes disse...

Este é um debate importante, e parece-me nas próximas décadas a tendência para o discurso político incorporar selectivamente certas pseudo-ideias científicas relativas à genética poderá aumentar. O que o Sarkozy fez é provavelmente o prenúncio do que pode estar aí para vir. E por isso a resposta da comunidade científica será decisiva.

E também fizeste bem lembrar que o eugenismo tinha muitos adeptos para além do regime nazi - inclusive boa parte a esquerda socialista britânica do fim do século XIX e primeira metade do século XX. Lembro-me de no "Véu da Ignorância" ter chamado a atenção para um livro sobre as ligações menos politicamente correctas da esquerda às posições - e práticas! - eugenistas "de Estado":

http://veu-da-ignorancia.blogspot.com/2006/05/haver-um-biowelfarismo-entre-o.html

vallera disse...

excelente post Zèd! e não é nada seca!
Viste o filme Gattaca?
http://www.imdb.com/title/tt0119177/

Zèd disse...

Hugo, é verdade o que dizes, parece-me também que vai haver uma tendência para incorporar as novas formas de eugenismo no discurso político. E em relação ao eugenismo e nazismo é óbvia uma "memória selectiva" sobre o assunto. Aprveitando a boleia do nazismo quem teve responsabilidades no assunto apaga a memória.

vallera, não vi o Gattaca (o título tem muita piada), mas vou procurar o dvd. Tinha-me passado ao lado, e parece bem interessante.

L. Rodrigues disse...

Sendo estas questões importantes, considero que a questão do determinismo e livre arbítrio é especialmente interessante quando se aborda a questão da Natureza humana.
Para uma boa parte da esquerda é um tema tabu e ainda se agarram à tábua rasa com todas as forças, fazendo um extremo enfoque na cultura e sociedade.
Isto implica que redesenhando estes factores, se consegue mudar as pessoas. Mas a coisa não funciona assim.

O nosso passado evolutivo equipou-nos com uma série de mecanismos e temas que não adianta fingir que não existem.
Nnão se deve é cair na falácia naturalista. O que é natural não é necessariamente bom.

Nesta altura gosto de citar do filme "A rainha africana":

"Nature, Mr. Allnut, is what we are put in this world to rise above."

Zèd disse...

Caro L. Rodrigues,

Concordo inteiramente, a esquerda muitas vezes no erro de negar evidências empíricas por opção ideológicas. Não só é um erro em si, como deixa o terreno completamente livre para a direita, com os novos eugenismos por exemplo, ganhar força.
Os humanos como o resto dos seres vivos são um produto da evolução e têm genes, é uma evidência que não vale a pena tentar contornar. Mas isso por si só não legitima o determinismo genético, e é isso que é preciso dizer.

Boa citação.