quinta-feira, 22 de março de 2007

Literacia científica (subsídio para)

O título do Público de hoje é cómico, a grande descoberta de hoje tem milénios na filosofia ocidental. Mas passe o provincianismo de o «nosso» cientista ter descoberto o já sabido, a notícia é um desastre (apesar de assinada por uma jornalista que já deu provas de saber o que faz). Não li o artigo de Damásio, mas se diz realmente «O neurologista António Damásio diz que sem as emoções não conseguimos fazer as escolhas morais correctas» (o que se lê no destaque do artigo), não chega a ser um artigo científico, e seria isso a notícia. Tal como está a notícia, vem na linha de várias, de que retenho uma outra sobre o número de doutorados em Portugal, em que o título de primeira página era enganador quanto ao conteúdo da notícia (tratava-se do número de inscritos em doutoramento a subir, não o de doutorados), a qual, por seu turno, apenas reproduzia dados do site da FCT, como um jornal gratuito, não de referência (aliás, até a notícia era mais pequena que a foto a ilustrá-la...). É por o jornalismo científico estar a cair assim, e os critérios de edição jornalistica serem estes, que não há quem pergunte ao ministro ou ao Primeiro Ministro onde andam os 1000 doutorados a contratar em 2007...
Don't get me wrong: Damásio é um cientista sério, o seu trabalho de divulgação é meritório, e até a gestão mediática que faz dele é inteligente (há cerca de um ano, a propósito de Freud, bem o Público tentou que ele desse a psicanálise por falsa, coisa que ele muito bem não fez, antes contradisse...). Continuo portanto a crer que Damásio terá feito algo mais inteligente que semelhante descoberta; mas suspeito que um destes dias algum jornal titule que se descobriu que a moral tem algo a ver com a justiça...
CL

9 comentários:

Zèd disse...

Não li a notícia do Público mas de facto é duvidoso que o António Damásio tenha publicado um artigo a relatar uma descoberta que ele próprio já fez há décadas. A ideia de que as emoções fazem parte do processo de decisão é central no livro de Damásio "O erro de Decartes" de 1995, e o livro foi escrito após cerca de vinte anos de investigação sobre o assunto, não é nada de novo no trabalho de Damásio.
No entanto esse trabalho tem uma inovação muito importante relativamente à "milenar filosofia ocidental" que é o de não se tratar de uma "mera" hipótese teórica. Os modelos propostos por Damásio baseiam-se no estudo de pacientes com lesões cerebrais que afectam a capacidade de sentir emoções, e a capacidade de tomar decisões racionais demostrando que as duas coisas estão ligadas e essa ligação tem uma causa biológica. Esta explicação biológica, o mecanismo funcional neurológico é o grande avanço de Damásio em relação aos filósofos. Aliás Descartes pensava exactamente o contrário (daí o título do livro), que as emoções eram nocivas à tomada de decisões racionais.
Mas isso é um à parte, o subsídio para a literacia científica é seguramente uma boa ideia.
O tal provincianismo quando se fala de cientistas portugueses bem sucedidos no estrangeiro é gritante, e o António Damásio (não é culpa dele) é recorrentemente citado nessas notícias. Quando se pergunta porque é que têm de ir para o estrangeiro para serem bem sucedidos assobia-se para o lado. Aliás nunca vi jornalistas a fazerem essa pergunta. Também isso é sinal de provincianismo.

CLeone disse...

Estamos de acordo, por isso só uma observação filosófica. talvez não se note (eu espero que não), mas a minha formaçao é em filosofia. E a tradição filosófica não se reduz a meras hipóteses teóricas. No caso de Descartes, o seu pensamento é demasiado complexo para ser apenas «exactamente o contrário» do que diz Damásio. Aliás, incluo-me nos que pensam que o título do livro deste é mais uma opção editorial do que autoral (lembor-me agora, só agora: em 1996, por esta altura, o Público fez uma coisa sobre um centenário de Descartes em que Damásio era entrevistado e não pretendia refutar Descartes, apenas a imagem estritamente racionalista deste.).
Este ponto interessa-me por um motivo filosófico e, igualmente, científico: a biologia não pode (não tem como) reduzir a vida mental a sinapses, o determinismo ainda é impossível com conhecimentos tão limitados como os actuais. A «explicação biológica» é uma hipótese, sim, e por enquanto não falsificada; mas o seu alcance não esgota o âmbito dos problemas que articulam sentimentos, emoções, razões, etc.
E os limites do determinismo biológico devem sevir de aviso para as ambições deterministas das ciências sociais, quer em relação ás humanidades, quer ao jornalismo quer de umas face a outras. Suspeto que também estejamos de acordo nisto, por isso não me alongo.
E obrigado.

Zèd disse...

Sim estamos de acordo mas isso não nos impede de debater.
O pensamento do Descartes é de facto mais complexo do que o meu comentário dá a entender, mas o do Damásio também. Foram ambos tratados em igualdade.

"a biologia não pode (não tem como) reduzir a vida mental a sinapses, o determinismo ainda é impossível com conhecimentos tão limitados como os actuais."
Não é possível e provavelmente nunca será, mas isso não invalida que a vida mental seja apenas sinapses (mas atenção, são milhões de sinapses, não é coisa pouca). Eu pessoalmente estou convencido que é, e se ainda não está provado muito menos está refutado. A biologia ainda não o pode provar mas isso é apenas uma limitação técnica.

"A «explicação biológica» é uma hipótese"
Sim, e convém nunca esquecer que qualquer teoria científica é sempre uma hipótese, até a teoria de Newton o era até ser desmentida por Einstein. O que eu quis dizer em relação à teoria de Damásio é que se trata de uma hipótese mas com suporte empírico, um bom suporte empírico. E mesmo que venhamos a ter uma compreensão muito melhor, mais aprofundada do funcionamento do cérebro o determinismo vai continuar a ser limitado, provavelmente nem faz muito sentido. A biologia já tem uma compreensão muito boa do Cancro por exemplo, mas contiunuamos a ser capazes de o impedir. Que não se tome os meus argumentos como defesa do determinismo.

CLeone disse...

Bom dia
De acordo de novo. O meu ponto foi simplesmente sublinhar que quer a filosofia quer as ciÊncias são teorias sustentadas em hipóteses, e que são válidas enquanto não «falseadas». Quanto ao determinismo, não faz sentido nenhum em questões morais (como a referida no artigo) ou sociais. Em Lógica tem o seu lugar, e por consequência o tem em ciência, mas é tudo no plano formal. O único que não conhec as limitações empíricas de qualquer ciência ou experiência.
As «descobertas» como a de ontem anulam a complexidade da experiência em favor de um dos seus modos (no caso, as sinapses) e, com isso, amputam-lhe sentidos - possíveis e necessários. Isto não significa que para mim seja tudo igual, em ciência ou não há sempre hierarquias e, nestas, a Lógica também cabe. Mas aqui a conversa teria de deixar Descartes e passar a Nietzsche, Freud e Weber, não é?
A (?) Zed é bióloga?

Zèd disse...

O Zèd (José Eduardo Gomes) é, quer dizer sou, biólogo mas não trabalho em neurobiologia, ou apenas marginalmente.

Hugo Mendes disse...

Olá Carlos, não queres colocar o teu post no "Peão" principal? Temo que aqui fique um bocado perdido e sem audiência.

CLeone disse...

Olá (a ambos)

Na verdade tive dúvidas quanto ao peão mais apropriado para o post, mas optei por este por ser menos activo. Tenho a impressão que o público não se interessa por coisas destas, daí o meu interesse em identificar mellhor o Zed: biólogo ou fisico, perguntava-me, apostando na hipótese afinal correcta... Mas obrigado pela sugestão, se bem me conheço mais dia menos dia deixo as caixas do peão e «posto» mesmo.
Até breve

Nuno D. Mendes disse...

Dizer que as descobertas de António Damásio sobre o papel das emoções no comportamento moral são apenas a confirmação da tradição milenar da filosofia ocidental é equivalente a dizer que a teoria quântica com o princípio da dualidade onda-partícula é apenas uma recapitulação de uma tradição milenar da filosofia oriental.

As hipóteses defendidas por Damásio são baseadas em evidências e em enquadramentos particulares de noções de "comportamento moral" que não têm raízes filosóficas mas antes explicacões evolutivas.

Ninguém na milenar tradição filosófica ocidental alguma vez ofereceu algo remotamente semelhante a uma teoria materialista do comportamento humano.

CLeone disse...

Pelos vistos o milenar excita muita gente... O MEU POST É SPBRE O TÍTULO DO JORNAL, NÃO SOBRE O TRABALHO DO Damásio, como está claro e o parágrafo «don't get me wrong» não permite dúvida.
(as maiúsculas foram acidentais)
Science wars, não, please